quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

ALÔ VÍDEO LTDA /4 VENTOS
PORTIFÓLIO RESUMIDO DE REALIZAÇÕES


DOCUMENTÁRIOS

LONGA-METRAGEM

MEMÓRIA PARA USO DIÁRIO
94`/ 2007, de Beth Formaggini
Co-produção com o GTNM-RJ (Grupo Tortura Nunca Mais)/ Apoio: União Européia

Sinopse
Nosso fio condutor é Ivanilda, que durante 31 anos procurou nos arquivos sinais do seu marido desaparecido político. Suas idas e vindas se trançam com as ações de militantes e parentes das vitimas da ditadura e da violência policial dos dias de hoje que vão desvelando outros fios pelas ruas e cemitérios clandestinos do Rio. Eles pertencem ao Grupo Tortura Nunca Mais /RJ e interagem entre a lembrança traumática e o esquecimento no trabalho de trazer à tona a memória de fatos recentes, revelando a seletividade da história oficial, e de construir uma memória política. Pensam o passado para que se possam libertar o futuro dos fantasmas que ainda nos perseguem no presente.
Prêmios e festivais percorridos
Melhor Documentário Júri Popular Festival Internacional de Cinema do RJ 2007; Melhor Documentário Júri da Associação Brasileira de Documentaristas e Curta Metragistas /RJ no Festival Internacional de Cinema do RJ 2007 ; Seleção Oficial Mostra Internacional de Cinema de SP 2007; Seleção Oficial Mostra Internacional Do Filme Etnográfico 2007; Seleção Oficial Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá 2008; Festival de Cinema Comunicurtas de Campina Grande- Paraíba 2007; Vitória CineVideo na UFES, Cine Metropolis, Universidade Federal do Espírito Santo 2007 ; Seleção II Mostra de Cine y Direitos Humanos da América do Sul – 2007 exibido no Rio de Janeiro, São Paulo, Brasilia, Belo Horizonte, Belém, Porto Alegre, Recife , Fortaleza. ; Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano de La Habana, Cuba 2007, Festival de Cinema de Cuiabá 2008.
O filme teve diversas exibições acompanhadas de debates com a participacão de membros do GTNM/RJ e da diretora. No Brasil foi exibido: na Escola Técnica da FIOCRUZ, RJ; no Cineclube Aquiry do Núcleo de Produção Digital em Rio Branco, Acre; no Cineclube ABDEC na “Casa de Rui Barbosa”, RJ; “Circo Voador”; na II Jornada de Direito da PUC , no Caco da UFRJ; no Curso de Extensão Direitos Humanos em Tela, na UERJ; no Núcleo de Políticas Publicas para os Direitos Humanos, NPPDH, UFRJ e no Cine Teatro do Museu Imperial de Petrópolis.
Exibições no exterior: Dockanema – Festival de Documentários de Maputo, Moçambique; Latin American Center, UCLA, Los Angeles, EUA; Centro de Estudos latino-americanos da Universidade da California, Berkeley, EUA; VI Congreso Internacional de Salud Mental y Derechos Humanos, organizado por Asociación Madres de Plaza de Mayo, Buenos Aires, Argentina e na Muestra de "Cine que Piensa", do Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano de La Habana, Cuba.
Matérias/críticas
Memória Para Uso Diário, por Rodrigo de Oliveira
Memória Para Uso Diário, e o nome não podia ser melhor. Mais que um filme para forçar o acesso emotivo a um passado coletivo submerso e dar voz a vítimas que se tornaram heróis, este é um projeto lindamente pragmático em sua militância: entre as diversas calhordices cometidas contra os revolucionários antiditadura militar e suas famílias, a mais grave foi certamente o apagamento da dimensão visível de sua história, e se há reparação possível, ela só pode se dar pelo “uso diário” do que sobrou desta gente – sua imagem, seus nomes, os signos associados a eles.
Em algum momento do filme, vemos uma parente de um dos militantes assassinados pelo regime falar sobre a perversidade embutida na invenção da expressão “desaparecido político”. É contra esse apagamento que Beth Formaggini investe, e o faz pelo desmascaramento, antes de tudo. A ditadura, como o cidadão brasileiro médio a conheceu, era a das imagens icônicas e da propaganda nacionalista institucional, largamente apresentada no prólogo do filme: não apenas os diversos cartazes e slogans repetidos à exaustão pelo regime, mas também a ostentação da caça e prisão dos vários “terroristas”, alardeadas nos jornais e na tevê como se aquele fosse um ambiente de faroeste, um “procura-se vivo ou morto” onde o rosto de um perseguido só tinha serventia até que ele fosse capturado – depois disso, o limbo, a morte secreta e o desaparecimento.
Uso diário é a experiência cotidiana desta memória, a ação corriqueira que nem por isso deixa de carregar todos os sentidos emocionais e políticos de que está preenchida. Numa das seqüências mais impressionantes do filme (e impressionante justamente por mostrar o caráter habitual da lembrança, e não o grande alarde profundo e pomposo que projetos dessa natureza costumam ter) acompanhamos a visita de Romildo a um cemitério no subúrbio carioca onde se suspeita que seu irmão tenha sido enterrado. Com a ajuda de uma amiga e também ex-militante, o homem começa a listar, de cor e com nome completo, dezenas de pessoas que faziam parte do mesmo aparelho de guerrilha do morto, montando um quebra-cabeça de identidades perdidas que surgem com a naturalidade de quem fala de amigos de infância. Romildo e a amiga não conheceram a maior parte daquelas pessoas em vida, e a única ligação que mantém com elas é a coincidência de terem participado junto com o irmão da luta armada. A memória é superficial e posterior, como a nossa, espectatorial, mas diferente de nós (e do filme), um nome dito é mais que a estampa de uma época, ele é o próprio reaparecimento, a alcunha perversa se desfazendo em nome do presente destas pessoas, mesmo que apenas oral e corriqueiro.
É assim, no limite de sua própria inviabilidade, que Memória Para Uso Diário vai se equilibrando. Porque há algo na sobrevivência dessa lembrança que está marcado por um irremediável senso de história íntima que nem todo o caráter coletivo da luta revolucionária pôde superar. Quando Tânia Roque visita a escola que leva o nome de seu marido morto pela polícia da ditadura, vemos uma celebração da figura de Lincoln Bicalho Roque que é marcada pelo reconhecimento emocionado para a família, enquanto nunca perde a sensação de valorização de uma ausência e de um vazio para os pequenos alunos e suas professoras. As crianças carregam faixas com o nome do militante, cantam enfileiradas o hino da escola, que exalta sua luta, fazem perguntas no microfone sobre quem foi e o que fazia aquele homem, mas, no fundo, nunca assumem estes discursos e essa celebração como sua propriamente.
Ponto de não-retorno definitivo é quando o filme leva um grupo de familiares dos desaparecidos pelas ruas de um bairro carioca para buscar endereços e placas que homenageiem ex-guerrilheiros (encontram no caminho, por exemplo, uma Praça Lamarca, ironicamente abandonada ao capim pelo poder público). É quando a mãe de Marcos Nonato da Fonseca encontra a rua com o nome do filho, mas, com uma placa enferrujada que impede o reconhecimento do nome, recorre a alguns dos moradores curiosos do lugar para que lhe dêem uma conta de luz que comprove a homenagem. Com a conta na mão, a mulher se dirige à câmera e mostra orgulhosa o nome do filho, enquanto um abismo se cria com o fundo do quadro, onde os moradores ainda não sabem direito do que se trata aquele fuzuê todo, e talvez nunca venham a saber ou se interessar. Não há chamado à memória e ao exercício da reparação que Beth Formaggini e o Grupo Tortura Nunca Mais (financiadores institucionais do filme) possam fazer sem que se esbarre neste abismo. A clandestinidade é a única marca da luta antiditadura que resistiu ao tempo, porque essa memória também é clandestina e, independente dos esforços de ambas as partes, ainda inviável.
Em Memória Para Uso Diário utiliza-se a estratégia do nome completo e do retrato 3x4 das vítimas, reforçados pelos letreiros finais que listam todos os ditos “desaparecidos políticos” do país, e ainda assim esta é apenas uma personificação de segunda ordem. É uma fissura da própria sociedade brasileira e sua incapacidade de lidar efetivamente com o período militar que acaba se espalhando para o cinema, do qual o filme de Formaggini acaba não deixando de ser um louvável retorno à regra. Não houve julgamento dos torturadores, não se prenderam os responsáveis pelas mortes, e as vítimas vão sendo indenizadas na surdina, em processos lentos e financeiramente desproporcionais. Do mesmo modo, este cinema brasileiro que fala da ditadura nunca conseguiu nem sequer levar a cabo a máxima godardiana de que as vítimas são sempre filmadas de frente, enquanto os carrascos aparecem sempre de costas.
Este acordo tácito pelo esquecimento torna mesmo a filmagem das vítimas um problema – e não só porque, como neste caso, o que resta delas é um retrato ou uma placa de rua. Mais do que a forçosa relação entre os desaparecidos dos 60 e os desaparecidos dos 2000, que o filme faz ao propagandear as ações do Grupo Tortura Nunca Mais contra o abuso policial sobre jovens da periferia e das favelas cariocas, o que Memória Para Uso Diário faz de realmente novo e instigante sobre esta relação do país com seu passado é filmar não os personagens da tragédia, mas seu depositário. Em poucos planos dos arquivos públicos nacionais onde uma viúva tenta buscar provas de que seu marido foi morto pelo Estado e, portanto, merece uma pensão do governo, vemos finalmente materializado todo o horror da desimportância que tanto a ONG como o filme tentam combater. Confusos, sujos, improvisados, escuros, os arquivos são o retrato mais fiel da falta de retrato: pastas e mais pastas com nome completo e eventualmente fotos dos mortos e desaparecidos, sem que isso possa garantir que as histórias guardadas ali possam um dia ser verdadeiramente ouvidas e revisitadas.
Links: http://videolog.uol.com.br/video.php?id=390578 / http://www.youtube.com/watch?v=MSTsRamHOqA

ETNOGRAFIA DA AMIZADE - SARACENI.DOC
71’/ 2007, de Ricardo Miranda
Co-produção com o Canal Brasil

Sinopse
O seu cinema e as suas idéias merecem a reflexão e a aposta. Paulo César Saraceni investe nas imagens e na afetividade. Seus filmes apostam no que de mais importante podemos jogar – os significados da liberdade. Portanto, vamos rever sua obra e com a mente aberta para a arte, artistas e inventores. Introjetar a vida existente nestas matérias da memória. O filme quer “amorosamente desvelar sentidos e formas para buscar no homem a magia da obra”.
Prêmios e Festivais percorridos
Festival do Rio, 2007; Festival Cineport, 2007; Festival Arariboia Cine, 2009; Festival Cineop - Ouro Preto, 2008; É tudo Verdade, 2009.
Matérias/críticas
Etnografia da amizade, Luiz Rosemberg Filho
Aprisionado entre o dinheiro e a maquininha de calcular eis no que foi transformado o cinema brasileiro: numa infinidade de espetáculos idiotas só objetivando tranqüilizar o inquietante e esperto patrocinador de polpudas maracutaias entre governo, bancos, companhias estrangeiras e redes de televisão. O hipócrita senador Marcelo Crivella não está incluindo as igrejas na Lei Rouanet? Os farsantes defensores de uma indústria de entretenimento apostam o que for no modelito de Hollywood. E isso com o “nosso” mercado todo ocupado pelo l-i-x-o dos ocupantes. Ou já não são também mais ocupantes?
Apesar disso, sólidos focos de resistência vêm do documentário “Cartola” e de “Etnografia da Amizade”, que fala sobre o delicado cinema de Paulo César Saraceni. Duas exceções bem-sucedidas infringindo a lei dos defensores do mercado para o outro. Para o inimigo, claro. Mas é onde se vai gozar hoje: no oferecimento do nosso espaço as certezas do imperialismo. Tornou-se um fiasco defender o mercado para nós. Um mercado que é nosso, e que deveria ser nosso. Não de Hollywood ou de religiões duvidosas – que acabam sendo a mesma coisa pois um depende da esperteza do outro.
Ricardo Miranda filma o cinema de Paulo César dando propriedade à poesia, ao pensamento, à oralidade e à longa amizade dos dois. Mas não é um ótimo montador que filma um cineasta, mas um diálogo afetuoso esfacelado pelo país que odeia o ser feliz. País cuja ambição política nega o ser sensível. Para o atual Brasil o bom é ser medíocre, covarde, enganador, oportunista, político sujo e honroso como inimigo de toda e qualquer contradição mais profunda. Paulo filmou o país que resistia apesar dos anos de chumbo. Ricardo filma-o num outro tempo que parece o mesmo. O país se nega a mudar e g-o-z-a com o sofrimento de todos.
O não-conformismo dos dois gesta uma multiplicidade de variações sobre o saber e o cinema, indo de Otávio de Farias a Bertolucci, passando por Lúcio Cardoso, David Neves, Gianni Amico, Nelson Pereira dos Santos, Paulo Emílio Sales Gomes, Mario Carneiro, Glauber Rocha... Não fosse suficiente a linguagem desconstruída, dançam (e Paulo dança bem) a alegria que não deixam o país viver. Ousaria até dizer que é um filme de coração, de luz, de encontros amorosos e de revoluções sufocadas. E no cinema brasileiro é o que mais se vive: mortes, traições e derrotas. No passado foi um cinema de idéias iluminadas. Hoje é um cinema burocratizado. O cinema do avestruz que esconde a cabeça e oferece o rabo numa funesta fidelidade a um mercado que nunca foi seu. E que pelo visto nunca será.
Mas não se trata de um processo de identificação de Ricardo Miranda com Paulo César Saraceni, e sim de superação moral e política do entreguismo dominante. Mas não são ou não se vendem como politólogos bodados no culto rancoroso da eterna decadência do país. A raiz do cinema de ambos passa pelo homem, como no cinema de Rosselini. Passa pelas relações, como no cinema de Antonioni. E muito pelo afeto que gesta amizades profundas. A individualização de Paulo César, como tema, é a superação do próprio personagem pois o que dá grandeza ao trabalho é o cinema como necessidade terapêutica e política, como na abertura do trabalho com Paulo numa invasão do MST. Ambos não fizeram do olhar uma falsa prática hierarquizada de acontecimentos medíocres. Acontecimentos medíocres que servem ao empobrecimento do olhar.
De “Arraial do Cabo” ao “Viajante”, Paulo César Saraceni filmou o esfacelamento de muitos e muitos sonhos, indo sempre além dos limites permitidos. O cinema de Paulo é visto por Ricardo Miranda como sendo essencialmente crítico, político, analítico e até bem-humorado, como no filme sobre a “Banda de Ipanema”. No início da sua história, cercado pelos jovens amigos do Cinema Novo. Hoje, dos poucos ainda vivos e com algum talento, a solidão que habita cada um. E o impressionante é que Ricardo não fez um cinema de recordações, e sim dando um passo à frente na condução de Paulo por múltiplos fragmentos amorosos, maiores. “Etnografia da Amizade” investe na indisciplina como linguagem. É bem mais que um documentário, é uma longa carta de amor ao cinema brasileiro.
O conteúdo flutua entre o terno discurso amoroso e as múltiplas contradições políticas do nosso tempo. O cinema-pensado de Ricardo Miranda atua fundo sobre o lado humano, contrapondo-se ao estilo superficial e chato do cinemão de mercado feito hoje para a bajulação ou lambeção do Oscar. É a vitória do sonho conservador sobre o cinema não-ilusório como queriam Brecht, Glauber e Godard. E é justamente neste contexto de zona braba que “Etnografia da Amizade” torna-se cúmplice da criação amorosa para o outro, vislumbrando a liberdade como arte numa recusa radical à cumplicidade com o mercado onde tudo se vende. Onde tudo está à venda.
Ricardo Miranda viaja na doce pessoa de Sarra, suscitando questões que nos levam a construir pedaços descontínuos da vontade do outro. Foi assim. O outro torna-se um espaço de reordenação de um sonho analisado pelo olhar rico e protetor, excessivamente, demasiadamente humano. Vê-se, então, Paulo trabalhado (quando o deixavam trabalhar), falando, pensando, dançando e imprimindo vida onde hoje só existe cansaço, traições, burocratas e idiotas surtados com o poder. O poder de bajular e contaminar o humano com a impotêncialização do nosso eterno fascismo. Ora, o que entende o poder de expressões subjetivas? O que sabe um burocrata da “consistência energética” dos sonhos? E o burocrata sonha?
A tematização do cinema não será nunca afirmativa, pois múltiplas são as motivações dos poucos cineastas talentosos, ainda vivos. A fala de um poderá ser o silêncio do outro. A razão abstrata criativa de um filme de Fábio Carvalho poderá ser a unificação do sujeito numa versão politizada no cinema-documento de Ricardo Miranda ou Isabel Lacerda. Falo aí de dimensões criativas, apaixonadas. De um conceito fundamental de conhecimento profundo. Não estou defendendo o cinema pelo cinema, mas a paixão capaz de defender a intimidade de pessoas como José Carlos Asbeg, Nina Tedesco, Alexandre Dacosta, Antônio de Andrade, Marcelo Ikeda, André Scucato... Ou seja, os jovens que estão chegando.
Paulo Cesar teve a sorte de estar próximo de Joaquim Pedro, Mário Carneiro, Glauber... que, de certo modo, o ajudaram na sua formação. Talvez também seja justo dizer que a própria reflexão de Ricardo Miranda sobre o trabalho de Paulo Cesar os coloca muito além do esteticismo burocratizado do estado fascista e da TV. Ora, por que não deixam Paulo Cesar continuar filmando? O atual cinema brasileiro “vive” um fazer sem-paixão. Todos os “filmes” se parecem, e não se pagam. Raríssimos são os filmes que marcam fundo na ignorância absolutista do mercado. Que mercado? Ainda assim Ricardo faz da sua “Etnografia da Amizade” um ato de fé na interioridade do respeito e do afeto. Ambos precisam continuar filmando! Alô, alô burocratas do Ministério da Cultura, da Ancine, da Petrobras.... Cinema é coisa séria e não empreguinho público.

NOVELA NA SANTA CASA - A PROMESSA DA FELICIDADE
100’/ 2006, de Cathie Levy
Co-produção com Abacaris Films e Les films du Tambour du Soir

Sinopse
Stendhal escreveu: 'A beleza é a promessa da felicidade'. A frase resume bem o filme de Cathie Levy 'Novela na Santa Casa', um filme sobre sonhos, esperanças dessas mulheres que vão à Enfermeria 38, onde funciona o Serviço de Cirurgia Plástica do Professor Ivo Pitanguy na Santa Casa de Misericórdia: um lugar único no mundo. Lá, a cirurgia estética é acessível a todas as classes sociais e o trabalho é voluntário. A cineasta francesa filmou durante 5 meses, acompanhando o processo, a viagem rumo às cirurgias de 7 personagens. Tudo começa na fila, onde as mulheres esperam pela consulta inicial desde a madrugada. 'Cada uma vai realizar o seu sonho', diz Valéria. 'Se Deus e Pitanguy quiserem', responde sua filha Fernanda. Será? A promessa da felicidade será mantida?
Prêmios e Festivais percorrido
Exibido no Festival do Rio, 2008

EM TRÂNSITO
98’/2005, de Henri Gervaiseau

Sinopse
O documentário explora situações do dia-a-dia, no trânsito e no transporte coletivo, envolvendo personagens anônimos que diariamente saem das suas residências - situadas nas zonas Oeste, Leste ou Sul da Região Metropolitana de São Paulo - e se dirigem, para trabalhar no Centro expandido do município.
Prêmios e Festivais percorridos
Melhor filme - prêmio Glauber Rocha, melhor documentário e prêmio da OCIC na Jornada da Bahia 2005, seleção Festival De Gramado 2005, Festival É Tudo Verdade 2006, Fórum.Doc, BH, 2005 e Festival Internacional de SP 2005.

MÉDIA-METRAGEM

APARTAMENTO 608 – COUTINHO.DOC
51’/ 2009, de Beth Formaggini
Co-produção com o Canal Brasil

Sinopse
Um documentarista em crise diante da sua obra. Eduardo Coutinho, visto bem de perto durante a criação do seu filme Edifício Master.
Matérias/críticas
Apartamento 608 - Coutinho.doc, por Luiz Rosemberg Filho & Sindoval Aguiar (Revista virtual Via Brasil e no site do Congresso Brasileiro de Cinema)
Rio de Janeiro – Ver e saber olhar são coisas diferentes. Todos podem ver, mas poucos sabem olhar. E é essa a diferença que atravessa e amplia esta pequena jóia de Beth Formaggini que parte do movimento interno de uma filmagem complexa. Ainda assim tranquilamente formula e prolonga questões na construção do seu próprio filme sobre as filmagens do Edifício Master, belissimamente editado não como fachada de um discurso comum sobre o Outro, mas assumindo toda a complexidade da criação de um filme difícil, pois geograficamente limitado a um prédio de pessoas comuns.
Eduardo Coutinho é observado sem mistificação alguma. Vê-se sim a sua luta para romper com o processo da ilustração da mesmice, como em 97% dos nossos documentários onde o Outro é só uma mercadoria sem alma ou contradição. Daí a responsabilidade de Beth e Joana Collier, no uso da fragmentação. Filma-se o real, mas edita-se apenas momentos poéticos. Dá-se especificidade a cada expressão, esboçando não o filme feito por Coutinho, mas as escolhas de Formaggine, tenaz e destemida. E são bastante claras as diferenças entre o Edifício Master (por nós já defendido), e a construção e os pensamentos da delicada edificação deste seu filme. Beth ilumina com cuidado essa passagem da ideia para as suas imagens.
Talvez seja, entre os documentários brasileiros, o primeiro trabalho serio sobre a elaboração pensada de um outro filme, longe de ser um making-off. E mais próximo das dúvidas do que das certezas. É quase um Oito e Meio do nosso documentário, em que Coutinho enfrenta seus medos, fantasmas e dúvidas. Quase um filme que se descobre na solidão interna do realizador.
E é interessante pensar essa obscuridade das muitas dúvidas de um documentário. Desmistifica-se com veemência e poesia de que tudo é documentário, e que toda imagem ou depoimento serve como condução da narrativa. O próprio Coutinho conduz deixando-se levar por uma jovem equipe que se transcende no quietismo das muitas dúvidas de tudo e de todos, onde a essência é o filme sobre pequenas vidas de certo modo, opacas. Ora, como dar um significado poético ao lado comum de um espaço comum? Mas interessa ao filme e a todos expor contradições sem magoar quem quer que seja. Edificou-se um país assim: adoentado e pequeno por dentro e sem vida inteligente por fora.
Beth Formaggine filma o tempo real da criação. Todos num apartamento alugado, pensando o prédio todo como sendo um país desconhecido. Dá-se significação as muitas contradições de um filme sendo feito. Logo no início, Coutinho diz não tem nada muito importante a dizer. E diz muito o tempo todo. A cineasta o filma com carinho e admiração. Filma-o pensando, fumando e falando o tempo todo. Não para o filme de Beth, mas para a sua própria equipe. Eis a razão de um filme diferente sobre o processo de criação do Outro. Repetindo: não é um trabalho sobre alguém, mas sobre o pensamento e a construção de um filme, do vazio as suas múltiplas contradições.
Falar de dentro nos parece mais interessante que estar disciplinado de fora como muito dos nossos críticos. A finalidade de um bom filme (e aí falamos como realizadores) é se reinventar a cada instante. Beth deixa-nos absolutamente livres para sonhar, entender, gostar ou mesmo não gostar. A grandeza do seu trabalho repousa no seu doce olhar sobre cada momento na construção do filme de Eduardo Coutinho. E a relação entre a cineasta e o filme do Outro, deve ser compreendida como uma experimentação bem sucedida, que distingue o Apartamento 608 de todos os documentários feitos sobre cineastas, atores, literatos e personalidades, pois documenta-se a gestação de um processo original, numa espécie de encenação de intimidades muito além da imagem-mercadoria.
Uma vez mais o cinema brasileiro é surpreendente, como agora onde documenta com estilo o universo de Coutinho. O filme excelente de Beth acaba sendo um projeto de concepções individuais e coletivas, com a abordagem de uma estética sociológica, filosófica e histórica. Um choque de realidades e emoções. De necessidades, compromissos e responsabilidades e tudo o que podemos definir, ou pelo menos tentar como um princípio de alterdireção deste cineasta do filme Edifício Master.
E a abordagem de Formaggini não é válida somente para o cinema mas, para todo e qualquer movimento do ser humano em busca da sua humanidade ou dos porquês dessa perda, negando uma construção tantas vezes tentada, como no velho mundo grego e, terrivelmente violentada nos processos altamente científicos e tecnológicos e de expansão dos progressos. De invasões e de extermínios em nome de interesses e verdades tão estranhos aos invadidos!
O que somos nós? O que é a coletividade? E este Edifício Master? O Apartamento 608 não tem respostas, mas sabe falar, ouvir, interagir entre verdades e mentiras, realidade e imaginário. O que a arte dos dois filmes soube muito bem nos ajudar para alguma caminhada neste absurdo que é a vida, de cujo valor cada um de nós nos tornamos muito responsáveis. Antes que a coletividade como sociedade e ordem nos aniquile e nos massacrem como excluídos e dispensáveis. Indagações precisas as de Coutinho, para uma projeções precisas como as de Formaggine.
Apartamento 608, o de nossos vazios e o dos vazios da multidão solitária. E Coutinho e Formaggine tiveram nos dois filmes, que projetar estes vazios! A arte é fiel ao nosso imaginário e recusa a ideologia e só ela sabe dar forma à utopia e ao futuro como crença, no vir-a-ser! A essa coisa difícil de ser que somos todos nós! Como Coutinho mesmo se definiu: “Eu gosto de estar só, de estar e deixar de estar”; esta tentativa de ser! E os dois grandes movimentos do filme de Formaggini acabam sendo fiéis e explícitos a todas as ocorrências; as que antecedem e as que sucedem a realização do filme de Coutinho. Da angústia ao prazer. Se, momentâneos ou não, vale o registro.
Apartamento 608 se torna um filme que jamais poderá ser visto como um making-off porque, pela leveza, sutilezas, profundidade de perspectiva e universo que aborda entre contradições, a realidade e o imaginário acaba derrubando todas as paredes ou muralhas entre o atrás e o na frente das câmeras. Se fazendo “in”, uma invasão que somente o sonho pode realizar, provocando conscientes e inconscientes e definindo uma autoestima, para uma projeção do Outro que, nada pode ser, senão nós mesmos. O que nunca conseguimos definir como bastardos de nossa própria cultura e civilização!
Os dois filmes segredam e revelam sem sublimar. O que a psicanálise tenta mas... (dai a César o que é de Cesar!). Pelo menos Freud tentou! E que Coutinho e Formaggini tentam! E são tantas as graduações que, somente o imaginário, o mágico podem hipotecar e projetar como o possível e o impossível, os caminhos da arte. Esta bela saída para nossas vidas e para o filme de Coutinho e o de Formaggini. Cada um com seu olhar! Cada um com seu filme!
Coutinho parece dono de uma alterdireção bem definida, levando para o trabalho o conjunto de suas experiências; avalia, joga, negocia com seus colaboradores. E suas preocupações são sempre elevadas além das contingências. Pensa o ser humano e eleva-se. E Beth soube acompanhá-lo nos contrapontos, mas com orquestra própria no mesmo concerto. O filme de Formaggini acaba dando forma aos tormentos e dúvidas do diretor Coutinho, o que ao final o filme define sem redimir ou compensar. Porque o ser humano e toda a humanidade são uma paixão inútil, como definia Sartre em O Ser e o Nada. Mas, o jogo da vida, além de uma necessidade é também uma sedução ou paixão.
O que esta cineasta e produtora independente captou belamente em Apartamento 608. Pela fluidez sem refluxos de uma narrativa paciente, amorosa, sensível e generosa. Para nos dar, pelo menos uma certeza, de que Platão tinha razão quando tentou banir o artista de sua República. Como no mundo do espetáculo e dos simulacros de hoje. Em que, aquele que tenta ser, refugia-se no vazio! No Apartamento 608!
25/4/2009
É Tudo Verdade: Beth Formaginni flagra o cineasta em ação no documentário "Coutinho.doc", que revela os bastidores de um mágico em pleno ato de ilusão e maravilhamento. Eduardo Coutinho em contra plano.
24/04/2009, Amir Labaki
O cotidiano de Coutinho está em documentário que estréia neste sábado no Canal Brasil
Documentaristas raramente se deixam revelar por documentários alheios de peito tão aberto quanto se permite Eduardo Coutinho em "Coutinho.doc - Apartamento 603", o obrigatório retrato dele assinado por Beth Formaginni cuja estréia é neste sábado, às 21h, no programa "É Tudo Verdade", no Canal Brasil.
À primeira vista, trata-se de um making of tardio de "Edifício Master", dirigido por ele em 2002 num prédio de classe média de Copacabana. Fosse apenas isso, já seria um registro único dos bastidores das filmagens de um dos principais documentários contemporâneos brasileiros. Experiente assistente e produtora de Coutinho, Beth foi muito além. Seu filme flagra pela primeira vez Eduardo Coutinho em ação.
"Edifício Master" é um dos pontos altos da fase áurea do cinema de entrevista na obra dele. Sua filmografia pode ser dividida em seis grandes períodos. O primeiro ocorre em sua estréia dentro do cinema ficcional do Cinema Novo, com o episódio "O Pacto" da trilogia "ABC do Amor" (1966) e os longas "O Homem Que Comprou o Mundo" (1968) e "Faustão" (1970).
Nos anos 70, a segunda fase destaca-se por sua brilhante conversão ao documentarismo dentro do insuperado período inicial do "Globo Repórter", quando realizou clássicos como "Seis Dias em Ouricuri" (1976) e "Teodomiro, o Imperador do Sertão" (1978).
Já o começo dos anos 80 marca seu afastamento do programa para trabalhar naquela que se tornou sua obra-prima absoluta, "Cabra Marcado para Morrer" (1984), no qual retrabalha como documentário reflexivo um projeto ficcional interrompido pela ditadura militar instaurada em 1964.
A consagração brasileira e internacional com "Cabra Marcado para Morrer" paradoxalmente iniciou um período de imensas dificuldades profissionais que se estendeu por mais de uma década. Coutinho dirigiu então sete obras, em geral realizadas em vídeo, sendo seis médias-metragens e apenas um longa cinematográfico, "O Fio da Memória" (1991).
Ainda assim, ao menos dois dos médias, "Santa Marta - Duas Semanas no Morro" (1987) e "Boca do Lixo" (1993), representam momentos seminais, não apenas pelo que retratam - o cotidiano de moradores de uma favela e o de desvalidos que sobrevivem de um lixão -, mas também pela experiência como documentarista do próprio Coutinho, ajudando a forjar o método que ele aperfeiçoaria nos filmes da fase seguinte.
Entre 1997 e 2005, com apenas uma exceção ("Peões", uma revisita aos companheiros sindicalistas de Lula), Coutinho consolidou um particularíssimo dispositivo de "cinema de entrevista" em quatro documentários: "Santo Forte" (1997), "Babilônia 2000" (1999), "Edifício Master" (2002) e "O Fim e o Princípio" (2005). Inicia-se então a sexta e atual fase de seu cinema, na qual problematiza a questão do real e do ficcional no cinema com filmes desbravadores como "Jogo de Cena" (2007) e o novíssimo "Moscou", lançado na competição brasileira do recente É Tudo Verdade.
"Coutinho.doc" nos traz, assim, o cineasta no auge de um período e à beira de uma nova ruptura. Vemos para além de seu particularíssimo método, com a definição de um cenário, a escolha de seus depoentes e o preparo para o registro de seu encontro em câmera com os entrevistados.
Coutinho permite-se aqui ser flagrado em pleno exercício cotidiano de seu ofício. Eis o debate franco com suas assistentes sobre as pré-entrevistas com potenciais personagens. Eis as inúmeras dúvidas sobre as escolhas. Eis seu desabafo sobre o medo de o projeto naufragar.
Beth conseguiu ainda mais. Sua câmera registra, pela primeira vez, o contraplano das entrevistas de Coutinho. Ei-lo perguntando, reagindo às respostas, sorrindo e seduzindo seu entrevistado.
Uma cortina assim se levanta. É como se espiássemos os bastidores da técnica de um mágico em pleno ato de ilusão e maravilhamento. Trata-se simplesmente de um dos mais valiosos documentos recentes da história do cinema brasileiro.
Você não precisa ter visto "Edifício Master" para se esbaldar com "Coutinho.doc". Conhecê-lo torna tudo mais complexo e fascinante - o filme está disponível para todos em DVD, mas não é essencial para o programa deste fim de semana. O "Coutinho.doc" de Beth Formaginni é um belo documentário em si mesmo.


CIDADES INVISÍVEIS
32’/ 2009, de Beth Formaggini
Co-produção com o INEPAC- SEC CULT RJ

Sinopse
A idéia do documentário Cidades Invisíveis surgiu por ocasião do início dos estudos de tombamento da Vila de Estrela, em Magé. Foi realizado nas ruínas de quatro cidades extintas do Estado do Rio de Janeiro: Santo Antônio de Sá, São João Marcos, Vila de Iguassú e Vila de Estrela. Produzido pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural – Inepac, o filme percorre os vestígios do que um dia foram residências, igrejas, pontes, ruas, e prédios públicos, ouvindo os antigos moradores e seguindo o rastro dos cronistas que por ali passaram, as pegadas daqueles que por ali viveram, amaram, trabalharam e ajudaram a construir uma cultura rica como a nossa. Através destes fragmentos trazemos à vida essas cidades, fazendo ver a importância do tombamento dos bens fluminenses e a luta pela preservação de suas memórias. Ativas entre os séculos XVIII e XX, Santo Antônio de Sá, São João Marcos, Vila de Iguassú e Vila de Estrela, foram importantes no processo de ocupação do solo fluminense, mas desapareceram em meio a crises econômicas, epidemias e ao abandono dos portos depois do advento das estradas de ferro quando deixaram de ser rotas importantes para o comércio entre o interior e a capital. São Joâo Marcos por sua vez foi destombada e demolida para dar lugar a uma represa, expulsando seus moradores que ainda hoje recordam com saudade a sua terra natal.
Cidades Invisíveis é uma tentativa de reconstrução de nossa memória política, cultural e afetiva. A história dessas ruínas conta também uma parte da história do Brasil, de suas lutas políticas, dos momentos de auge e decadência econômica e ressalta a importância de reconhecer e valorizar o aspecto humano e identitário dos nossos bens culturais.


NOBREZA POPULAR
48’/ 2003, de Beth Formaggini

Sinopse
Nobreza Popular é protagonizado pelas mulheres congadeiras da comunidade de Chapada do Norte - Vale do Jequitinhonha - MG , que se divertem durante a Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. O filme focaliza seus gestos, cantos e danças e os rituais ligados à água quando pedem chuva e outras graças à Virgem do Rosário.
Prêmios e Festivais percorridos
Premiado no Fórum Doc BH e exibido no Festival Internacional do Filme Etnográfico RJ e Festival é Tudo Verdade SP e RJ



GARRINCHA UCELLINO DI DIO
//// 2001 de Paulo César Sarraceni
Co-produção com a RAI3

Sinopse

WALTER.DOC
56’/ 2000, de Beth Formaggini

Sinopse
Realizado em três anos, procura flagrar o tempo presente, passado e futuro. Centrado na palavra do cineasta Walter Lima Júnior, revela sua arte de narrar e o entusiasmo pelo seu ofício.
Prêmios e Festivais percorridos
Exibido no Canal Brasil e no Festival Internacional Do Filme Etnográfico RJ e Festival É Tudo Verdade SP e RJ

JOAQUIM PEDRO.DOC – AÇÃO ENTRE AMIGOS
52’/ 2004, de Mario Carneiro
Co-produção com o Canal Brasil

Sinopse
Lembranças de amigos, família e colaboradores de Joaquim Pedro de Andrade, tais como Albert Maisles, Eduardo Escorel, Walter Lima Jr, PC Saraceni.
Prêmios e Festivais percorridos
Exibido no Fórum Doc BH


TRAVESSIA DA CHAPADA
42’/1999, de Henri Gervaiseau

Sinopse
Prêmios e Festivais percorridos
Exibido no FICA - Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental, Goiás, 2000.

TEM QUE SER BAIANO?
42´/1993, de Henri Gervaiseau.
Sinopse
O filme mescla sequências de entrevistas e imagens do passado e do presente da comunidade nordestina em São Paulo. Depoimentos de migrantes nordestinos anônimos e famosos, como Lula e Luiza Erundina, misturam-se com entrevistas de habitantes da metrópole e de políticos paulistas conservadores. Completam esse painel discursos de políticos dos anos 30, manchetes de jornais, fotografias, músicas, vídeos e filmes.


Prêmios e Festivais percorridos
Prêmio de melhor documentário Rio cine 1994, prêmio especial do júri na Jornada internacional da Bahia, 1994; menção honrosa Guarnicê Maranhão, 1994; menção honrosa Tam Tam vídeo Itália 1994; Festival de Leipzig 1994, exibido nas Tvs Bandeirantes, Gazeta e Futura.
Matérias/críticas
Palestra de Henri Gervaiseau sobre o filme
“Eu vou falar um pouco destas questões que foram levantadas aqui, mas muito em cima desta experiência de realização desse filme, particularmente, desse vídeo, "Tem que ser Baiano" e um pouco do "Em Trânsito" e talvez ainda de um outro trabalho que eu esqueci de sugerir que também passasse aqui porque tem a ver com imagens de acervo. É um pequeno clipe de três minutos e meio que eu fiz em 1988/1989 a partir de uma música do Gilberto Gil que se chama "Touchez pas mon potte". Touche pas mon potte seria, traduzindo para o português, não toque no meu chapa, não toque no meu amigo. Era o lema de uma associação anti-racismo que se chamava SOS-Racisme, cujo presidente na época tinha um nome bastante interessante, se eu for traduzir o nome do presidente desta associação, chamava-se “Desejo de Harlem”, Harlem Desir.
Enfim, a França é um país que tem uma tradição de acolhimento de exilados, de gente de tudo quanto é canto. É uma terra de acolhimento e ao mesmo tempo é um país que tem uma tradição minoritária, mas bastante forte, que hoje em dia tem mais força do que no passado, que é uma tradição de direita, e é até uma tradição que poderíamos dizer de extrema direita. Até tem um restaurante aqui em Porto Alegre que para mim é um pouco chocante, eu gosto muito de ir lá quando estou aqui, chama-se Ocidente. Na minha memória de jovem parisiense, Ocidente era um movimento de extrema direita que havia em Paris nos anos 70. Eu tenho 54 anos, naquela época eu era um jovem esquerdista e fazia muitas manifestações de rua contra a Guerra do Vietnã. A França é um país, Paris principalmente, é um lugar que se vai muito, se ia muito à rua para se manifestar a favor ou contra certas coisas, e o Ocidente era um grupo de extrema direita que saía à rua armado, enfim... Então foi criado esse movimento nos anos 80 basicamente, e o Gil fez essa música, que era ao mesmo tempo a época do centenário da abolição. Então, sendo franco-brasileiro, eu me sensibilizei muito por essa dupla efeméride, como se diz e pensei que seria interessante usar esse gênero videográfico do clipe para tematizar essa questão, ao mesmo tempo do preconceito e da luta contra o preconceito. E eu fiz isso muito em cima de imagens de arquivo, particularmente de fotografias, na idéia de que isso é um dos aspectos do interesse de se usar imagens de arquivo. Você recupera imagens de momentos emblemáticos, que o seu expectador pode não ter conhecido, se o expectador é mais jovem, ao mesmo tempo, você pode trazer imagens também que os outros expectadores viram. E o fato de você trazer à lembrança aquela imagem que já tem um certo tempo, e você associá-la a outras, pode ter algum tipo de impacto na mente do expectador, já que, como vocês sabem, a nossa memória, ela é composta basicamente de imagens, o fenômeno mnônico, o fato de você se lembrar de alguma coisa que desperta o processo de lembrança, pode vir de várias formas, pode ser um cheiro, pode ser uma música, mas na nossa mente, as lembranças, elas são como se fossem fotogramas, mas que não tem uma base fotoquímica, e sim um substrato mental. Então, você usar imagens de arquivo também pode ajudar a ter certo tipo de impacto no espírito, na mente do expectador.
Eu me interesso por este tema da migração nordestina há bastante tempo, sou filho de um francês com uma cearense e sempre me interessei muito por este aspecto da migração que é um fenômeno social que tem importância talvez menos contundente no Brasil de hoje, mas que já teve uma importância muito grande no curso do século 20, de movimento de população e de mão-de-obra entre as regiões brasileiras, foi algo constitutivo de nosso país. Tanto no final da escravidão, do tráfico de escravos, tráfico intraprovincial de escravos, quando a escravidão, o tráfico de escravos foi proibido, como depois com o chamado mercado de trabalho nacional se constituiu, o mercado de trabalho livre, e depois enfim na história então da urbanização brasileira. Um fenômeno bastante significativo e hoje em dia, por exemplo, em São Paulo o fenômeno da migração não tem a mesma importância, não aportam tantas pessoas de fora, mineiros e nordestinos, como aportavam em outras épocas. Mas é um fenômeno que teve importância muito grande na história tanto do estado de São Paulo, quanto na história da metrópole paulista. E é uma história que é muito pouco conhecida na verdade, então eu me interessei muito por esta história e realizei no início da década de 80 uma série de entrevistas de história oral com imigrantes nordestinos. Eu estudei e percorri muitos arquivos e no início dos anos 90 quando reuni um pouco mais de elementos para poder produzir um documentário, que foi feito na época com muito pouco recurso, o fenômeno estava adquirindo um caráter um pouco diferente.
São Paulo é uma cidade que tem uma história muito peculiar, ao mesmo tempo em que tem uma tradição de esquerda - qualquer que seja a apreciação que se faça hoje em dia sobre o PT, em São Paulo, ou no Rio Grande do Sul, de que o PT foi forte em São Paulo e ainda é, o movimento social é muito forte - ao mesmo tempo há cidades brasileiras que tem uma tradição conservadora e uma tradição de direita, embora a direita aqui no Brasil não se declare como tal, não tem uma plataforma clara como na França. São Paulo tem uma tradição conservadora antiga e ao mesmo tempo em que é uma grande metrópole, é uma metrópole que ao menos até recentemente era bastante provinciana. Os paulistas têm uma espécie de fundo, vamos dizer assim, oligárquico autocentrado, e isso mudou e tem mudado bastante, mas em São Paulo você se depara com uma tradição de autocentramento. Isso junto com uma certa raiva pela vitória da Erundina, no período ainda um pouco complicado da história recente do Brasil, quer dizer, o último presidente militar saiu em 85, depois disso tivemos o Sarney. A Erundina se elegeu em 1988, havia uma raiva muito grande por parte de certos setores conservadores paulistas pela eleição de uma nordestina de origem modesta como prefeita. Então é uma mistura de raiva de um certo eleitorado conservador com a manipulação dessa raiva por parte de políticos de direita, misturado com a crise econômica e social que o Brasil vivia no início do Governo Collor. Todo esse caldo de culturas, tinha uma conjuntura muito complicada nesse período.
E eu quando retomei esse trabalho, esse tema, não tinha a priore a intenção de dirigi-lo muito para a atualidade, acabei pesquisando muito em acervo. E eu julguei que seria fundamental tentar contar um pouco dessa história muito mal conhecida da migração nordestina em São Paulo, de que na verdade nordestinos vieram para São Paulo inicialmente porque foram subsidiados, se pagava o transporte para as pessoas virem. Eu achei que era fundamental contar essa história usando vários tipos de materiais de arquivo: textos, mas também imagens e sons. E foi enfim o que eu fiz nesse documentário "Tem que ser Baiano", que por um lado usa muitas fotografias, tem fotografias do Cruzeiro, vários tipos de fotos da época dos anos 50, 40 e tal. Usa filmes de época, tem imagens que aparecem de caminhão pau-de-arara, como se chamou, é uma programação de cine jornal que se chamava “Bandeirantes na Tela”, um cine jornal da época dos anos 50, início dos anos 50, também cita um filme muito usado que é esse do café que é de 22, você vê o pessoal trabalhando no café. E eu também fiz uma pesquisa ampla num arquivo de um colecionador de música e canções populares, não sei se ele está vivo ainda, chamado Nirei, então todas as músicas, a maior parte das músicas usadas, fora a do Luiz Gonzaga que aparece no final, vem desse arquivo, e a música tema do filme que é “Tem que ser Baiano" eu descobri numa loja perto ali da Praça da Sé, foram canções da época, também anos 50 basicamente. Então eu fiz um mix, fui uma espécie de DJ audiovisual, usando imagens e sons de diversas procedências e numa postura que não é tanto do historiador no sentido mais rigoroso da palavra porque, por exemplo, tem uma seqüência no filme onde ao mesmo tempo em que surge um texto de um deputado estadual paulista na assembléia constituinte de 34, onde se discutia o subsídio à imigração, e que diz “queremos que os nordestinos venham, a lavoura cafeeira esta precisando”, esse é um texto de 34. As imagens que nós vemos são de 28. Não é um trabalho de historiador, mas sim de alguém que busca mais trabalhar com a memória e através desse entrecruzamento de fontes orais, imagéticas e textuais, visa problematizar a abordagem do assunto e também suscitar interrogações na mente do expectador.
É claro que neste sentido a imagem mais uma vez tem uma função muito específica que é variável segundo o expectador, já que se o espectador já conhece aquelas imagens isso pode ter um certo tipo de impacto, se ele não as conhece isso tem um outro impacto. Ao mesmo tempo tem um jogo que você pode fazer na sua composição, na composição audiovisual, no conjunto do documentário produzindo, que é você mexer com a própria memória do expectador, por exemplo, nesse documentário tem muitas imagens que aparecem repetidas vezes, mas elas aparecem repetidas vezes associadas de forma diferente, a outras imagens. Então a primeira vez que a imagem aparece ela aparece dentro do contexto de um conjunto de imagens, associada a um certo tipo de som ou de falas, e ela ressurge depois associada a outras imagens, outras falas. Esse é um recurso que também mexe com a memória, aí no caso do expectador durante o próprio filme, isso é um tipo de procedimento que eu usei e que eu acho que é muito interessante de a gente usar quando vai fazer um documentário.
Eu fui muito influenciado por um grande cineasta armênio, que eu não sei se vocês já ouviram falar que se chama Pelechiam. Se vocês forem reparar, todos que se chamam iam são de origem armena, inclusive tem um homem que vende bonés numa das ruas ai de Porto Alegre que tem o nome iam e eu perguntei para ele e ele é de origem armena. Mas enfim o Pelechiam, grande cineasta armênio, muito pouco conhecido, ele veio ao Brasil numa mostra de cinema em São Paulo, nos anos 90 e não tinha um gato pingado na mostra dele porque essa coisa de divulgação e tal, mas é um dos grandes montadores de cinema, ele foi redescoberto na França e na Europa nos anos 80 e ele é um cineasta que tem uma teoria muito interessante resumida num artigo, é a teoria da montagem à distância. E os filmes dele me influenciaram bastante.
Na verdade ele retoma muito da grande tradição de uma certa vertente do cinema soviético dos anos 20, do Eisenstein e particularmente do Vertov, que é a de que a arte da montagem busca articular não apenas fotogramas contíguos: como é que se relaciona um fotograma após o outro, como é que você liga uma imagem após a outra; mas que a arte da montagem, ou a arte dos intervalos para retomar a terminologia que o Vertov usava, ela também tem a ver em como criar uma distância entre fotogramas: como ao longo de um filme você pode articular fotogramas criando uma distância entre um momento e outro que passa o mesmo fotograma. Você muda o contexto em que o fotograma apareceu a primeira vez, em que ele é repetido na segunda vez e isso tem uma importância grande na mente do expectador e também no tipo de produção de sentido que a associação de imagens pode sugerir já que evidentemente como vocês sabem a produção de sentido ela se dá muito como na poesia no cinema pela associação das imagens. No caso deste trabalho eu tinha lido e tinha visto alguns filmes do Pelechiam e aquilo ali me impressionou bastante, me influenciou bastante então foi uma forma que eu tive de pensar a montagem desse filme.
Eu acho que o documentário se presta muito a isso, na medida em que ele tem uma liberdade de composição, não é um discurso científico racional, que deve produzir enunciados unívocos, que tenham apenas um sentido, o documentário em grande parte é um discurso, visa produzir um discurso de cunho poético, cujo entendimento, cuja leitura não é homogênea. A sucessão das imagens pode querer dizer várias coisas, o documentário se presta também ao uso de fontes escritas, imagéticas e sonoras. O documentário ele pode ser interessante também no sentido do quê resulta do confronto entre fontes diversas, o que resulta do confronto de uma imagem, de uma fotografia antiga, de uma canção antiga e o discurso atual? Como você pode suscitar novas reflexões, novos pensamentos, através desse confronto? Não usar apenas uma imagem ou um som antigos, uma fotografia, apenas como um elemento de prova, como se fosse um documento jurídico, numa argumentação de um advogado, uma prova pericial. A imagem fotográfica particularmente tem esse caráter indicial, é um vestígio, é um rastro de algo que efetivamente aconteceu, então tem essa dimensão de prova, vamos dizer assim, mas ao mesmo tempo você pode usar essas fontes e o confronto de fontes para produzir interrogações não é.
Outro aspecto que me parece também interessante no uso de filmes, fotos, imagens e sons de arquivo é que, justamente como parte das imagens ou dos sons que você usa pode ter tido uma recepção por parte do seu público antes, você está também de alguma forma lidando com o limiar da memória das pessoas, da memória individual das pessoas, da memória coletiva. Então se você viu determinado filme, ou viu determinada foto emblemática, em determinado período, isso também cria um certo tipo de impacto na memória do expectador.
Tem outro aspecto também que a gente pode pensar do trabalho do documentarista neste sentido, relacionado a um trabalho de produção de uma memória, que é não apenas a incorporação de fontes pré-existentes, sejam fotos, sejam filmes, sejam sons, músicas, programas de televisão. O documentarista, usando material audiovisual ou escrito pré-existente ou não, ele de alguma forma está produzindo de uma forma consciente, um documento. Ele se preocupando no momento de editar, registrando as suas cenas, suas situações da vida cotidiana, de entrevistas, ele de alguma forma se preocupando em constituir uma memória na medida em que o registro audiovisual se constitui efetivamente, pode se constituir em algum tipo de documento. Por isso até que… se bem que esse termos de documentário né que hoje a gente usa comumente assim como tudo que é não ficção de alguma forma… tudo que é não ficção não, ai já fica um pouco mais complicado, porque sei lá, é… programa de televisão, a Xuxa, sei lá que não é uma ficção, não é um documentário. Mas o termo documentário é um termo relativamente recente, e até o termo de não ficção também. Para que algo se chame de não ficção tem que ter uma evidência, para que a gente consiga chamar algo de não ficção, isso pressupõe que existe algo que a gente chama de ficção. Então isso nasceu com o cinema. Já que documentário pode haver documentário biográfico, documentário televisivo é algo que vem já do cinema, e quando o cinema nasceu não existia por um lado o campo do documentário e por outro lado o campo da ficção. O campo da ficção e o campo da não-ficção, isso é algo que foi progressivamente se constituindo.
Mas então é esta dimensão de documento, o documentarista deve se preocupar com a dimensão do registro que ele é capaz de produzir. E nesse caso, tanto quando eu fiz esse documentário “Tem que ser Baiano” que vocês viram, quanto muitos anos depois este outro que talvez parte de vocês vejam aqui, se tiverem paciência de ficarem tanto tempo aqui dentro, que vai passar daqui a pouco, me preocupei de forma diversa, com essa dimensão do registro. De que forma? Por um lado, por exemplo, no caso do “Tem que ser Baiano”, voltando àquelas questões da direita conquistando o pensamento conservador, etc. isso é algo próprio da sociedade brasileira, não é uma tradição, por parte do pensamento conservador, e dos políticos que tem uma atuação que pode ser qualificada mais conservadora, de ter um discurso ideológico muito explícito em defesa de suas posições conservadoras. Sabemos, geralmente são posicionamentos excludentes, que visam a defender os interesses de porções mais privilegiadas da sociedade. E nós sabemos que a sociedade brasileira é uma sociedade excludente. Não é por acaso que até hoje, por mais que haja um progresso neste sentido, a sociedade brasileira é uma das sociedades mais desiguais do planeta, onde a concentração de renda é maior e onde há uma distância mais quilométrica entre quem ganha pouco e quem ganha muito. Enfim, não vou rebater aqui coisas que são conhecidas de todo mundo, mas o fato é que não há, como na França, por exemplo, um pensamento tradicional de direita, que se afirme de direita. Aqui ninguém diz que é de direita. Eu achei que no contexto do tipo de discussão que me interessava favorecer com esse filme, desse documentário, eu deveria registrar o pensamento conservador. Tanto o pensamento conservador de figuras que poderiam ter um discurso ideológico mais explicito, como são estes vereadores e deputados estaduais que eu entrevistei e que aparecem neste documentário, como de pessoas comuns de São Paulo, percorrendo algumas ruas, de alguns bairros onde o eleitorado tradicionalmente vota na direita, como a Mooca.
Isso é um tipo de registro, um tipo de fonte que o documentarista pode produzir, para sua finalidade imediata, o documentário que ele vai produzir, como também aí sendo uma espécie de produtor de documentos para o historiador no futuro, por exemplo. Quando eu fiz o “Em Trânsito”, que é um outro tipo de trabalho, foi um documentário basicamente sobre o dia-a-dia de pessoas no trânsito e no transporte público em São Paulo e na grande São Paulo, sobre os trajetos das pessoas, nos trens, metrôs, ônibus, carros, motos. Por outro lado, o filme também conta com algumas conversas, alguns diálogos de profundidade, com algumas pessoas, que partilham sempre desse dia-a-dia e que, no decorrer da conversa, se a conversa era boa, abordava outras questões que estavam ligadas ao dia-a-dia, que permitiam ver como é esse dia-a-dia mais prosaico possível. Todo mundo tem que fazer isso, sair de casa para ir trabalhar, é algo bastante universal digamos assim essa necessidade, bastante banal, ocorre que isso se liga com outras dimensões da vida, sobretudo numa cidade em que as pessoas passam muito tempo fazendo isso, porque a cidade é muito grande e porque o transporte público é complicado. E tem coisas banais para a gente que vive no dia-a-dia, certamente vocês conhecem aqui Porto Alegre… é freqüente, num sinal, num engarrafamento, enfim, você estar dentro do seu carro e ter gente que é ambulante, que vende mercadorias na rua. Isso é banal na cidade. Quando eu estava fazendo esse documentário, no dia, por exemplo, que a gente estava gravando numa rodovia, eu fiquei pensando assim “bom, mas, isso é banal, é cotidiano”. Mas ao mesmo tempo isso é interessante, a gente gravar o que é banal, o que é cotidiano, esse tipo de relação humana que se estabelece neste tipo de situação, que a gente acha completamente banal.
Neste sentido, o fato de ser franco-braslieiro, de ser de dois lugares, poderia ser franco-árabe ou brasileiro-sueco, o que importa mesmo no fato de ser de dois lugares é que ajuda você a ver de forma estranha o que é o familiar, não é isso? Porque é sempre interessante você fazer isso, você olhar para o que é banal, para o que é óbvio, com um olhar de estrangeiro. Eu pensei na França, por exemplo, em Paris, isso não acontece com tanta freqüência como acontece em São Paulo, no Rio ou em outras metrópoles brasileiras, você ter neguinho lá com um monte de bugigangas, bichinho de pelúcia e de negócio de celular, não sei o quê, que vende e aí a pessoa no carro passa todo o dia por lá, uma mulher burguesa, então a filha dela é amiga da menininha que está lá com o pai vendendo bugiganga. Normalmente esse contato não é tão comum. Então isso também eu acho que é algo, o documentarista no presente, tentando documentar algo do dia-a-dia e registrando algo daquele dia-a-dia, pensando que esse dia-a-dia do presente pode dizer alguma coisa sobre a sociedade em que ele se encontra, e ao mesmo tempo pode vir a ser um documento no futuro, de como as pessoas viviam naquela sociedade, naquele momento. Isso evidentemente não fui eu que inventei, esse tipo de postura é algo bastante presente na preocupação de quem registra… a partir do momento em que o registro… a possibilidade de você registrar fragmentos do dia-a-dia, fragmentos do cotidiano, a partir do momento que os artefatos técnicos permitiram, de uma forma que isso fosse possível, essa idéia já se encontrava.
Por exemplo, não sei, o grupo aqui da UFRGS deve acompanhar isso, eu por acaso estou trabalhando em alguns vídeos, em função do meu trabalho lá na USP, e eu estava revendo esse livrinho aqui, um livro que estuda a fotografia e o documentário alemão e americano dos anos trinta e como naquele período muitos fotógrafos escreveram em revistas a idéia de um estilo documental e como essa discussão não apenas uma discussão acadêmica, mas isso também essa discussão em revistas etc. e tal resistiu porque essa é uma prática fotográfica no presente. Então havia um diálogo entre os fotógrafos escrevendo no espaço acadêmico, e os fotógrafos vamos dizer assim produziam textos, e Isso é algo presente, por exemplo, no projeto de uma fotógrafa americana desse período, dos anos trinta, que é a Abbott, ela tem um projeto muito importante, salvo engano eu me lembro que se chamava Changing New York, “Nova York mudando”. A idéia era fotografar de forma sistemática e contínua Nova York, porque a cidade estava evoluindo. Então essa idéia do registro, particularmente na fotografia americana dos anos trinta é algo presente em muitos projetos, e tem muitas iniciativas.
Tem um cara que é contemporâneo da Nouvelle Vague, muito amigo do Godard, que se chama André Labarthe. Ele fez muitos programas de TV, uma série muito interessante que se chama “Cinema de notre temps”. Eu nunca vi os trabalhos dele, mas ele conta numa entrevista que ele mora em Paris, no mesmo lugar há 30 anos, e todo ano ele vai à mesma esquina com uma câmera 16 milímetros, e ele filma durante várias horas aquela esquina, mais ou menos na mesma posição. Eu não sei se ele já fez alguma coisa dessa gravação, acho até que tem um filme de ficção de um escritor americano que retoma um pouco uma idéia parecida, o “Cortina de Fumaça”. Não sei se esse realizador americano soube dessa história do André Labarthe, mas tem alguém que está fazendo isso efetivamente há 20 anos. Então essa idéia de você intencionalmente produzir no presente um registro, isso pode ser algo que é produzido profissionalmente, com vistas a uma utilização futura, mas que não é jogado na visão imediata dos contemporâneos. Você de alguma forma, como esse André Labarthe, está filmando, mas isso não está circulando. É a constituição de uma espécie de arquivo, vamos dizer assim, ou você pode também, como é o meu caso, você está realizando um documentário, tentando de alguma forma documentar a sociedade em que você vive e fazendo circular essas imagens, mas tentando também ter um olhar ligeiramente distanciado deste dia-a-dia.
Eu vou ler aqui as minhas anotações do que eu preparei aqui um pouco para comentar e algo que eu preparei tem a ver com a correspondência que eu troquei com a Anelise, quem é ela aqui hoje?
Eu estou aqui dialogando de alguma forma com algo que ela me colocou que seria interessante que eu comentasse algo sobre os itinerários urbanos presentes nos documentários que eu fiz, a questão da sociabilidade, que eu acho que são temas que vocês trabalham aqui, então que seria interessante falar alguma coisa…
Já vindo para essa questão que tem mais a ver diretamente com o “Em Trânsito”, filme que vai passar aqui. As pessoas, efetivamente hoje em dia… São Paulo talvez seja um fenômeno mais sofrível do que em outros lugares, nós passamos hoje muito tempo em transporte e nesse tempo que nós passamos em transporte, muitas coisas acontecem, quando estamos nos deslocando. Tanto quanto nós nos deslocamos a pé, por um certo tipo de sociabilidade que pode acontecer, como quando estamos nos meios de transporte coletivos, como ônibus, metrô, trem, como quando nós estamos dentro de um carro. São tipos de sociabilidades diferentes. Isso então era algo que me interessava muito quando eu pensei em produzir um documentário sobre essas questões. E ao mesmo tempo me interessei um pouco, e isso vai muito da influência do De Certeau, que é um grande etnógrafo, historiador, enfim, ele era um monte de coisa ao mesmo tempo, que é um homem que escreveu um grande livro que chama a Invenção do Cotidiano, ele se interessava muito pelo quê as pessoas fazem, como é que as pessoas numa situação em que elas não escolheram, vou aqui resumir de uma forma um tanto sumária parte das questões que De Certeau colocava, mas um dos aspectos que ele chamou a atenção é que hoje em dia, no mundo contemporâneo, as pessoas vivem em situações que elas a priori não inventaram, mas como dentro destas circunstâncias que elas não inventaram, elas conseguem inventar? Você passa três horas num ônibus para ir da zona sul de São Paulo, ou do centro de São Paulo para a zona sul. Você vai ficar lá sofrendo essas três horas, se lamentando porque “nossa, mas que desgraça, todo dia essa desgraça e tal” ou você vai procurar fazer algo nessas três horas, você vai procurar reinventar algo dessa adversidade. Não sei se vocês sabem, mas esse é um fenômeno muito interessante, acho que o hip hop aqui em Porto Alegre é algo, pelo menos até recentemente pelo pouco que eu sei, e eu sei muito pouco, me parece que não é um fenômeno desprezível aqui em Porto Alegre. Se não é em Porto Alegre, ainda menos em São Paulo. Muito do pessoal do hip hop se conheceu em ônibus, até um dos personagens que aparece no “Em trânsito” é um happer que conta que nos anos 90 todo dia, ele era Office boy e tinha que ir do centro de São Paulo onde ele trabalhava, para a zona sul onde ele morava e que tinha um samba de primeira, toda a sexta feira, particularmente. Enfim, isso é um certo tipo de sociabilidade…

Outra forma de sociabilidade é a reserva, que é algo que a Rita trabalhou bastante aqui na… no trabalho dela, enfim muita gente se interessa pelo que o Simmel tematizou, a solidão do cidadão metropolitano, dentro da multidão você evita o contato, porque é um excesso de contato, excesso de possibilidades de contato. Então as pessoas se fecham, isso é uma sociabilidade às avessas, mas não deixa de ser um fenômeno de sociabilidade, quer dizer, você evita o contato, mas você evita o contato porque ele é possível, porque há um excesso de contatos possíveis, você quer proteger a sua individualidade, e é claro que o fenômeno mais radical disso é o cidadão recluso no seu automóvel, com o seu vidro fumê, com medo de ser assaltado. Enfim, tudo isso são fenômenos contemporâneos de sociabilidade, você tem também outro tipo de fenômenos que são manifestações religiosas que podem acontecer particularmente nos trens, eu não sei se isso acontece nos trens de subúrbio aqui em Porto Alegre, mas no Rio e em São Paulo isso é um fenômeno muito presente, em certos tipos de linhas. Isso se dá também é claro pela necessidade que as pessoas têm de se agregar através de ritos religiosos e também pela dificuldade que elas têm de realizar isso no seu dia-a-dia fora de um espaço mais ritualizado que é um templo. Então já que o meio de transporte se transformou num lugar de passagem em que se passa muito tempo, um certo tipo de sociabilidade muito específica se reproduz nestes meios de transporte como uma questão muito fundamental do mundo contemporâneo. Isso me interessou bastante.
Quanto aos trajetos, isso tem a ver também com essa questão, quer dizer, os trajetos que as pessoas realizam numa metrópole são diferenciais, tem muito a ver evidentemente com o tipo de grupo social ao qual você pertence, tem a ver com o lugar que você mora. Interessou-me bastante, ao mesmo tempo vendo aqui os pontos sugeridos também para eu poder dizer alguma coisa para vocês, de dialogar com vocês a partir do que a anelise sugeriu, esta questão dos cenários urbanos, como é que a gente vê a cidade quando estamos num meio de transporte? Isso é um certo tipo de visão que se tem da cidade, você vê em geral a cidade emoldurada através de um quadro que é a janela. Em geral as janelas, pelo menos dos trens de subúrbio no Rio de Janeiro e São Paulo, elas são mais opacas, são mais fechadas, então você não vê muito a paisagem urbana. Em compensação em São Paulo você tem o metrô subterrâneo, mas você tem também o metrô que passa, não sei se chama assim, na França se chamava metrô aéreo, metrô que passa como se fosse uma espécie de trem, não passa num túnel, ele passa no meio da cidade. A janela do vagão é ampla, então você vê a cidade através dessa janela e tem um certo tipo de percepção da cidade. Da mesma forma, quando você está no ônibus você tem um certo tipo de visão através da janela. E muita gente que vive uma vida puxada, muito do desfrute visual que essa pessoa pode ter da cidade em que vive, é um recorte fragmentário que se dá através do enquadramento oferecido pela janela.
Enfim, são muitos trajetos e muitas visões que você pode ter, a visão que você pode ter, por exemplo, o tipo de apreciação visual que você pode ter da paisagem urbana, é diferente se você circula de moto. Uma coisa é você ter essa experiência sensorial “na vida real”, na vida que você realiza, na experiência sensorial que você vive no seu corpo, com o seu corpo, quando você está como terráqueo, dentro de um meio de transporte qualquer e quando você está andando. Outra cosia é a experiência que você tem desse tipo de circulação visual do cenário urbano quando você está sentado numa sala de cinema ou em frente ao seu vídeo, quando essa paisagem urbana lhe é oferecida para ser vista por um filme, porque ai evidentemente que o cineasta ou o videasta, qualquer que seja o termo que se use, ele pode lhe dar uma apreciação, construir um movimento cinético de um certo tipo, ele pode recortar essa paisagem e remontá-la na cena que ele quiser de um jeito X, para produzir um certo tipo de efeito, na mente do expectador.”

TERRA PROMETIDA
52’ /1999, de Henri Gervaiseau

Sinopse
A região da Chapada do Araripe, situada na fronteira entre Ceará, Pernambuco e Piauí, é o cenário de tradições orais e mitologia dos índios Cariri. O trabalho desenvolvido pela organização não-governamental Fundação Casa Grande/Memorial do Homem do Cariri tem por objetivo a descoberta, a valorização e a difusão do rico patrimônio arqueológico, mitológico e cultural da região, a partir da intensa participação de crianças e adolescentes da comunidade, na maioria pobres ou de origem modesta.
Prêmios e Festivais percorridos
Festival Internacional Do Filme Etnográfico RJ 1999; Prêmio Margarida De Prata, 2000.


CURTA-METRAGEM

ANGELI 24H
25´/2010, de Beth Formaggini

Sinopse
O foco é o processo de trabalho do cartunista e chargista Angeli, e as transformações e crises do nosso personagem diante da sua obra.
Realizado através do Edital de curta-metragem do MINC


CASIMIRO
11’ /2008, de Mario Carneiro e Paulo César Saraceni


Sinopse
Os cineastas Paulo César Saraceni e Mario Carneiro seguiram os passos do poeta Casimiro de Abreu em Barra de São João, sua terra natal. Casimiro traduz em imagens a linguagem deste artista romântico, revelando a forte visualidade de um dos poetas mais populares do Brasil.

Prêmios e Festivais percorridos
Selecionado pelo Festival Cine Música, Conservatória, RJ, 2009.


BRICOLAGE – ROSEMBERG.DOC
24’ / 2008, de Ricardo Miranda
Co-produção com o Canal Brasil

Sinopse
A percepção do artista. Bricolar para entender a obra e homem. Pedaços de memória, filmes, recortes e idéias. Pedaços do fazer.
Prêmios e Festivais percorridos
Festival Internacional de Curta-Metragem de BH, 2008; Festival Arariboia Cine, 2009.


NÓS SOMOS UM POEMA
15’ / 2008, de Beth Formaggini e Sergio Sbragia
Co-produção com Serpente Filmes e Lumearte

Sinopse
Participações Musicais de Elza Soares, Jards Macalé, Céu, Diogo Nogueira, Mariana de Moraes e Marcelo Vianna
Prêmios e Festivais percorridos


DOGGY, O CÃO DA GLOBALIZAÇÃO
16’/ 2007, de Julia Martins
Co-produção com Favela Filmes

Sinopse
Dogui aborda o tema da globalização a partir de um ponto de vista inesperado, o de um cão. Os personagens são desenhados a mão e animados digitalmente sobre backgrounds reais, filmados documentalmente.
Prêmios e Festivais percorridos
Prêmio de Inovação Narrativa no Festival Internacional de Cinema de Cascavel- PA, 2008; Prêmio de Melhor Curta de Animação no II Festival de Curta Metragem de Cabo Frio, 2008.
Participação em Festivais: Festival de Cinema Guarnicê, São Luís, MA, 2008; Philadelphia Independent Film Festival, USA, 2008; Festival de Curta Metragem de Cabo Frio, 2008; Cinesul – RJ, 2008; Festival Internacional de Cinema de Cascavel- PA, 2008.

VIDEOCLIP

TOUCHE PAS À MON POTE (DE GILBERTO GIL)
1988, de Henri Gervaiseau, Beth Formaggini, Solange Padilha e Flavio Ferreira


MOSTRAS DE CINEMA

"Mentiras verdadeiras" - Ciclo dedicado a Coutinho no DocKanema
Maputo – Moçambique, 2009
Festival moçambicano destaca produção brasileira e alemã
Adriana Jacobsen, da Deutshe Welle
"Mentiras verdadeiras"
O ciclo dedicado a Coutinho mostrou sua trajetória desde os anos 1960 até seus trabalhos mais recentes. Durante uma semana, foram exibidos em Maputo o antológico Cabra Marcado para Morrer, além de Edifício Master e Moscou, entre outros filmes do diretor. A produtora e realizadora brasileira Beth Formaggini, curadora da mostra e colaboradora de longa data do diretor, falou em entrevista à Deutsche Welle sobre os limites entre o real e a ficção nos filmes de Coutinho.
"Essa é uma pergunta que permeia sua obra. No documentário, as pessoas se transformam em personagens, que se mostram para a câmera da maneira que gostariam de ser vistas. O chamado 'efeito câmera' acentua essa performance. O cinema de Coutinho explicita essa mediação e a negociação entre o autor e o protagonista frente à camera", diz ela.

Walter Lima Jr. - Inocência e Delírio
CCBB Rio e SP

Joaquim Pedro de Andrade
CCBB-RJ

Mostra Vida
Eco 92

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

O Último Artista

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010
O Ultimo Artista
Este texto de Eduardo Subirats faz parte de um projeto que também inclui um documentário ainda incompleto sobre Ulisses :“O último artista” de Beth Formaggini com produção de Lelia Coelho Frota, Eduardo Subirats, NYU e 4Ventos.

O último artista.
Arte popular e cultura digital



Eduardo Subirats é autor de uma série de obras sobre teoria da modernidade, estética das vanguardas, assim como sobre a crise da filosofia contemporânea e a colonização da América. Escreve assiduamente na imprensa latino-americana e espanhola artigos de crítica cultural e social


1

Nos recebeu quase desnudo. Empapado de lodo. Agitado. Chegava de um vale próximo, aonde havia encontrado uma fonte d’água depois de várias jornadas de trabalho desesperado. Muito econômico em palavras. Falava de uma terra ressecada e crestada pela interminável seca. “Terra estragada”, dizia. E nessas palavras ressoava uma consciência cósmica. “Antes tínhamos tudo. Tudo estava aqui no monte. Agora tudo está destruído e custa muito trabalho cultivar a terra. Os homens a sujeitaram a um poder falso…”

Deixaram-me impressionado a elegância de sua figura, a textura enxuta e vibrante de sua pele negra, a inflamada energia de seu olhar envelhecido e profundo. Fascinaram-me suas cerâmicas. Animais metamorfoseados, figuras imaginárias, rostos. Encontravam-se um pouco por todas as partes. Presas em estacas, pelos caminhos, escondidas em buracos profundos na terra, quebradas e dispersas na vegetação cheia de ervas daninhas que rodeava sua horta. Em uma choupana, que era seu ateliê, guardava suas melhores peças.

Ulisses Pereira Chaves chamava suas esculturas feitas de terra cozida de “natureza viva”. As concebia como matéria iluminada por uma energia espiritual própria. “Elas nos estão vendo. O que esculpo são suas visões e suas vozes...” Cerâmicas que são metáforas. Mas que, por sua vez, participam do mesmo ser que simbolizam. Nessa unidade de suas figuras de barro e de uma natureza cósmica que as integra, reside seu valor artístico. Nesta unidade se encontra o diálogo dessas cerâmicas com os humanos e com as coisas. Nela se funda sua realidade única e irrepetível. Seu significado espiritual.

Naquele primeiro encontro, me chamou a atenção a insistência de Ulisses no valor educativo e comunitário de seu trabalho artístico. “É necessário criar uma escola de cerâmica para as crianças desta região”, dizia, com gesto de sonhador desesperado. Em sua visão, este objetivo formativo não se restringia à aprendizagem de técnicas. O propósito que formulava era mais a transmissão das memórias culturais através de uma formação artística que compreendia o conhecimento de meios e materiais, mas também uma forma específica de percepção e compreensão da realidade. Ulisses expressava a urgência de recriar estas memórias no meio destas comunidades como uma condição de sobrevivência. Memória como direito ao existir.

Em todas as aldeias que visitávamos, com suas famílias de artistas, que já foram pequenas ou grandes, sentíamos esta mesma presença espiritual. Quero mencionar uma experiência em especial: a “Aldeia Grande” que, na Serra do Cipó, não muito longe da cidade de Belo Horizonte, reúne as nações indígenas da diáspora pós-colonial brasileira, sob a liderança espiritual de Ailton Krenak. É um modelo de restauração de memórias e comunidades históricas. Em torno do canto e da dança, e dos rituais religiosos ligados a essas expressões artísticas milenares, se restituem hoje os vínculos da memória que o colonialismo moderno destruiu em um processo que não parece ter fim (1).

Esta visão profunda que tinha Ulisses da obra de arte, de seu significado misterioso e mágico como “natureza viva”, e de sua função recriadora das memórias culturais, nos levou a uma outra viagem. Em março de 2002, um ano depois de nosso primeiro encontro, atravessamos novamente as serras de Diamantina e o vale do rio Jequitinhonha, no estado brasileiro de Minas Gerais, até chegar à remota aldeia mineira de Caraí, em cujo distrito vive Ulisses. Os protagonistas desta nova aventura eram Lélia Coelho Frotta, a antropóloga que guiava nossa expedição, e Beth Formaggini, uma documentarista dedicada especialmente a temas sociais e educativos, ambas do Rio de Janeiro. Maria Lira Marques, uma artista popular do mesmo vale do rio Jequitinhonha, se juntou também a nossa expedição. E, por último, eu mesmo, um professor mais ou menos conhecido da Universidade de Nova York. Nosso objetivo final, como já mencionei, era o mistério poético de um pássaro azul. Procurávamos por um ceramista que habitava em uma paragem remota e selvagem. E que esculpia em barro os espíritos que povoam o cerrado. Um último artista em um penúltimo paraíso.

A viagem atravessava alguns obstáculos. A vasta região, culturalmente diversa e biologicamente rica em tempos pré-colonais e coloniais, havia sofrido uma dessas secas atrozes, que perduram anos, que assinalam na escala regional os efeitos do aquecimento pós-industrial global. Agravado pelas estratégias locais de desflorestamento, a plantação massiva de eucaliptos, e a conseqüente liquidação terminal da fauna e das fontes hidrográficas da região. O vale do Jequitinhonha atravessava um grave processo de degradação ecológica, com fome e epidemias como suas posteriores conseqüências. Oficialmente havia sido declarada zona de calamidade. Repentinas chuvas torrenciais, só algumas semanas antes de nossa partida, haviam levado de rompante vidas e caminhos.

Mas nosso propósito era uma missão impossível por diferentes razões. Íamos apetrechados com um arsenal de gravadores, máquinas fotográficas e câmaras digitais. Pretendíamos fazer um documentário sobre Ulisses, registrar imagens de suas peças e digitalizar sua memória. Queríamos arquivar o conseqüente vídeo na rede. Um projeto academicamente inatacável. Registrado administrativamente como uma operação de restauração eletrônica de memórias culturais em extinção. Mas sabíamos que nossa empresa se depararia com imponderáveis.

Éramos perfeitamente conscientes de que a conversão digital de memórias culturais significa a eliminação de suas dimensões artísticas primárias. Sabíamos que significava sua subtração comunitária. Era transplantar um mundo de experiências, conhecimentos e símbolos inextricavelmente vinculados a formas de vida milenares, para o sistema de informação eletrônica e para a cultura acadêmica que o sustenta. Pior ainda. Planejávamos uma reprodução digital que levava consigo a conversão de uma cultura oral, e das formas específicas de contato humano e de relação com a natureza que lhe é peculiar, às normas epistemológicas de uma civilização chamada a devastá-las. E sabíamos que tudo isso supunha a desativação de seu sentido espiritual. Nem mais nem menos do que o dilema dos missionários coloniais que, com uma mão destruíam de roldão símbolos, conhecimentos e formas de vida milenares, e, com a outra, transcreviam os restos de suas alquebradas memórias a formatos escriturais, para modificá-las e controlá-las com sistemas de representação e de poder.

Nossa viagem era singular. Atravessava serras e vales remotos ao encontro de um personagem fabuloso. E perseguia um objetivo paradoxal. Queríamos documentar uma concepção artística cujas dimensões espirituais e cognitivas não podiam reduzir-se ao software da indústria acadêmica, nem aos valores da cultura digital. Pretendíamos filmar o que não podia ser filmado. Para tornar as coisas ainda mais inquietantes, eu havia prometido produzir nosso vídeo para o Hemispheric Institute da Universidade de Nova York. Deveria incluir o documentário em seu arquivo digital de performances populares da América Latina. Mil dólares. Metade para fitas da Sony, o resto para o artista.







2

Ao longo de nosso caminho, Maria Lira, a artista popular, nos detinha uma vez ou outra. Descia do automóvel, desaparecia na mata, subia por terraplenos. Logo a víamos longe, remexendo a terra, em busca de grãos e texturas, escavando as diferentes tonalidades das areias, removendo argilas. A seguir, recolhia pigmentos vegetais e os distribuía, junto com essas terras, em diferentes frascos. E repetia este ritual tal como uma possuída. Como se sua coleção, e a conseqüente mistura e transformação dos materiais, fechasse alquimicamente um ciclo cósmico.

Enquanto a observava, recordei minhas próprias rotinas de professor de estética na Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo. Naqueles seminários havia insistido na ocorrência de uma inovação central das vanguardas artísticas do século 20, que as contemporâneas linguagens digitais haviam eliminado sem maiores contemplações. As collages de Schwitters ou as frottages de Max Ernst colocaram em evidência a importância expressiva de materiais naturais e suas características sensíveis imediatas. Significaram uma revalorização espiritual das matérias e de suas propriedades sensíveis. Na Bauhaus de Dessau, Johannes Itten, Paul Klee e Oskar Schlemmer também enfatizaram o caráter simbólico das matérias consideradas em sua imediatez tátil e textural.

Esta valorização expressiva e formal de texturas ou manufaturas, cores e densidades materiais pela arte abstrato moderna estava intimamente associada a uma restituição dos significados criadores e ativos de uma natureza que a civilização tecnocientífica havia subordinado a uma categoria negativa e ontologicamente nulificada. E que a civilização pós-industrial rebaixou à categoria terminal de dejeto biológica e espiritualmente irrecuperável. Para aqueles artistas, sem dúvida, criar significava repetir e estender o próprio processo gerador de uma natureza ativa e da existência humana presente nela. Klee refutou a concepção epistemologicamente sancionada da natureza como realidade objetiva, separada de uma existência humana e reduzida à dimensão discursiva de um sujeito racional tecnocientífico. A obra de arte constituía portanto o meio de realização ou de restauração daquela unidade cósmica primordial que a ciência newtoniana havia eliminado, mas que se manifestava nas expressões da arte chamada primitiva, da chamada arte popular, assim como de algumas formas artísticas tecnicamente rotuladas como psicopáticas ou infantis.

O anti-humanismo pós-estruturalista descartou estas dimensões profundas da experiência artística como um impenetrável reino do irracional, de obscuras raízes místicas não-ocidentais, inteiramente alheio à tradição cartesiana-newtoniana e ao subseqüente conceito plano de modernidade. Em nome deste parti pris se tem deixado de lado uma ampla série de expressões artísticas e cognitivas contemporâneas não necessariamente assimiláveis pelos valores globais do conceito tecno-econômico e financeiro de modernidade. Os pintores associados ao grupo Die Brücke, por exemplo, não se aproximaram à escultura africana porque formalmente se adaptaram melhor ao funcionalismo abstrato da era da máquina do que pudera fazê-lo o naturalismo acadêmico do momento. Contudo, buscavam nesta tradição uma dimensão profunda da existência humana que escapava inteiramente aos paradigmas morais e estéticos do classicismo europeu. De Gauguin a Tarsila do Amaral, a reflexão artística sobre o “primitivo” ou o “popular” se abria como uma válvula de escape de uma cultura ocidental cuja desumanização e autodestruição não cessaram de advertir esses artistas, nem deixou de se aprofundar ao longo de seu desenvolvimento. As dimensões transcendentes da obra de arte africana e oriental, seus significados espirituais ligados à sexualidade, a geração e a morte foram os elementos que precisamente buscavam Picasso ou Bruno Taut, Mário de Andrade ou Antonin Artaud na pintura, na arquitetura, na literatura ou nas artes performáticas. Em seus experimentos e expressões habitava uma mesma vontade de restabelecer um vínculo simbólico entre o humano, a natureza e o sagrado.

O uso habitual e corrente da etiqueta “arte popular” não significa, necessariamente, que exista algo assim como uma definição. Arte popular é mais um fato cultural do que um conceito. No mundo latino-americano, o que a distingue da chamada arte culta, da arte considerada erudita ou da arte tout court não são características estéticas intrínsecas às obras designadas sob este nome. Ao contrário. Antonin Dvorák, Igor Stravinsky ou Manuel de Falla, na música, Federico García Lorca, José Maria Arguedas ou João Guimarães Rosa na literatura, não cessaram de transitar por esse “território proibido”. Da abstração cubista ao teatro surrealista e da Land Art até a Pop Art, as vanguardas, neovanguardas e pós-vanguardas do século 20 não cessaram de repetir e reiterar, freqüentemente com resultados medíocres, aspectos elementares da chamada arte popular, da arte catalogada como indígena ou de uma suposta arte etnológica. As fronteiras estéticas entre o “popular” e o “moderno” têm sido porosas, e seus significados se mesclaram em ambas direções: o erudito com o popular, mas também o popular com o erudito. A música popular brasileira e suas festas de Carnaval demonstram extensos exemplos de incorporação de expressões poéticas, plásticas e arquitetônicas por parte das vanguardas literárias.

A classificação e desqualificação de um gênero específico de obras e expressões artísticas como “populares” não se baseia em categorias estéticas. O que antes de tudo distingue o popular é seu lugar social de origem. Seus objetos procedem de um meio social politicamente colonizado e economicamente depauperado. Não é preciso recordar, por outro lado, que em nossa galáxia democrática a extrema pobreza e a marginalidade são categorias globalmente confinadas sob intransponíveis fronteiras étnicas. A arte popular não é branca. Tampouco cristã. Ou não é suficientemente cristã. Sua secreta relação com uma compreensão mística da natureza, com os cultos de deuses perseguidos e com comunidades economicamente espoliadas a associa, desde o começo do colonialismo ocidental, com a categoria inquisitorial, e mais tarde epistemológica, de superstição. Seu nulo valor mercantil é uma conseqüência de sua sub-valorização artística e intelectual. Como se tudo isso não fosse ainda suficiente, estas obras chamadas populares se inserem em economias não monetárias de subsistência. Museográfica e institucionalmente não se equiparam com a arte propriamente dita. Seus artefatos são normalmente catalogados como instrumentos de cultura material nos campos fechados da antropologia e da história natural. Em concursos artísticos nacionais e internacionais as obras chamadas populares são descartadas ou segregadas em uma categoria subalterna. Sua diferença culturalmente sancionada é negativa. Não se lhes atribui uma dimensão estética propriamente dita. Tampouco se lhes reconhece uma dimensão subjetiva e espiritual autônoma. No melhor dos casos, se aprisiona a arte popular dentro de uma subcategoria de arts & crafts.

Com uma só uma exceção. Sob uma única condição elementar se levantou o status ontológico subalterno da arte popular e se tem aberto as portas do museu: sob os códigos lingüísticos, acadêmicos e comerciais da Pop Art. Um incidente, do qual fui testemunha, talvez esclareça esta ambígua relação.

O caso em questão ocorreu em 1985, no Museu de Arte de Brasília. Neste marco institucional se vinha celebrando anualmente um prêmio nacional de artes plásticas. Mas naquela ocasião o jurado havia descartado uma obra em particular. Era uma escultura em madeira policromada, de dimensões médias, que representava a figura de um animal imaginário através de uma linguagem abstrata. Era notável sua composição colorista, que rompia com os cânones tradicionais da harmonia, herdados do impressionismo, resultando em efeito de grande expressividade. O dinamismo espacial de suas formas era outra de suas poderosas características estéticas. Em suma, era uma obra que chamava a atenção por sua originalidade e por algo que me cativou, ainda que não saiba muito bem como explicá-lo. Era uma obra que contrastava claramente com a anódina uniformidade lingüística dos demais concorrentes, e, ao mesmo tempo, se valia de um repertório formal similar às correntes do neo-expressionismo europeu e americano que naquele momento estavam em voga.

Sem dúvida, havia sido desclassificada e desqualificada. Não custa dizer que nessas situações ninguém explica de maneira aberta as razões que estão por detrás desses vereditos. São dados como inevitáveis e nunca ninguém sabe muito bem como. Contudo, havia a casualidade de que seu autor pertencia a uma tribo amazônica, e em tempos coloniais e pós-coloniais o “índio” carece por definição de história e de individualidade. E, em conseqüência, não é reconhecido como sujeito no sentido transcendente da palavra. Tampouco pode ser autor. É l’autre, empregando outra metáfora do nominalismo racista contemporâneo. E os “outros”, por serem diferentes, não são artistas. Nem aquela obra de arte era uma obra de arte. Ainda que ninguém pudesse dizer que outra coisa poderia ser.

O episódio, sem dúvida, não acabou neste ponto. Após dar seu parecer, um dos membros do jurado, que havia desclassificado a obra em questão, a comprou de seu autor em particular. Nem é preciso dizer que a adquiriu a preço baixo. Mas, além disso, casualmente esse juiz era também um artista. E não só era um artista, mas pintava bananas segundo os códigos sancionados do Pop norte-americano. Suas obras, que se encontravam, lingüisticamente falando, em algum lugar indeterminado entre as latas de tomate de Andy Warhol e as caixas de Kleenex de Tom Wesselmann, haviam sido vendidas abundantemente em uma galeria do Soho de Nova York. Esse êxito comercial lhe proporcionou um nome. E o bom nome lhe havia elevado à condição de juiz. E o círculo mágico se fecha assim.

Certamente, a definição de arte popular é obscura. Confunde-se com artesanato. É prisioneira da categoria de folclore. Foi degradada a um valor ornamental. E as complicações tampouco terminam aqui. Arte e cultura populares têm sido conceitos politicamente problemáticos no contexto da crise civilizatória que a implosão do industrialismo promoveu na Europa do começo do século 20. Sua idealização nostálgica, nos finais do século 19, esteve fatalmente vinculada com um progresso da sociedade industrial que arrasou as memórias populares européias e eliminou as formas de vida tradicionais. Foi esta nostalgia romântica que conduziu os pintores impressionistas dos povoados rurais da Bretagne ou do Languedoc às mais remotas ilhas oceânicas, nostalgia que alimentou um pouco mais tarde o fascínio expressionista pelas culturas orientais e africanas. Mas este mesmo idealismo romântico se precipitou também em uma ontologia vitalista e em uma filosofia de redenção nacional, que deságua nos populismos autoritários do século 20.

A distintiva proximidade da arte popular em relação à natureza, sua fusão com valores religiosos e o arraigamento a um passado que se confundia com a noite dos tempos elevaram as categorias de Volkskunst ou de Alma popular a fundamento de uma identidade nacional opaca e absoluta. Unamuno reivindicou nos últimos anos do século 19 uma arcaica identidade popular hispano-cristã, naturalizada na paisagem. Spengler fundava pouco depois a cultura popular nos laços indissolúveis do sangue e da terra, manifestos nas festas populares, no artesanato ou na arquitetura campesinos. Vasconcelos exaltou um conceito biológico do popular representado por uma raça híbrida hispano-americana chamada a configurar um futuro cósmico das nações latinas. Rapidamente a cosmologia inca, os aparatos tradicionais centros-europeus de influência oriental ou os castelos árabes de Al-Andalus se transformaram em carburante para a confecção e falsificação industriais de novas identidades lingüísticas, raciais e religiosas nacionais, e suas conseqüentes exclusões lingüísticas e sociais.

Esta história negativa do conceito moderno de cultura popular não reside, sem dúvida, nas coloridas danças tirolesas, no canto profundo cigano, ou nos cultos pré-colonais ou pós-colonais à Mãe Terra. A história negativa do moderno conceito populista de cultura reside na sua substantivação e na sua instauração como bandeiras de identidade nacional, como postulados de exclusão lingüística, étnica e religiosa, e como ícones do fanatismo político. Reside no essencialismo nacional-estatal que o atravessou, como já foi dito muitas vezes (2). E reside, sobretudo, em dois aspectos fundamentais que geralmente se deixam de lado. Primeiro, sua codificação como estereótipos que as elites intelectuais e acadêmicas difundiram como as identidades essencialistas dos nacionalismos do século XIX, ou como as diferenças subalternas do conservadorismo pós-moderno de finais do século 20. Mas a história negativa dos Pop-cults se instaura sobretudo a partir dos poderosos meios eletrônicos e institucionais que têm permitido difundir e instaurar estes estereótipos de identidade popular sob a perspectiva expansionista imposta primeiro pelos fascismos europeus e mais tarde pelo neoliberalismo transnacional.

O culto arcaico do Blut und Boden, os vínculos raciais do sangue e da terra, e a idealização de identidades tribais fundadoras da consciência nacional, no sentido em que o defenderam Spengler e Ortega y Gasset, foram algumas das expressões arcaicas desta identidade popular substancial (3). Mas a moderna mediação tecnológica e industrial que permitia implementá-las como efetivo valor absoluto e universal são centrais neste conceito de cultura popular, com suas retóricas de sacrifício, guerra e patriotismo. Goebbels postulou os valores da autêntica alma popular nacional precisamente no contexto de uma discussão sobre as funções dos novos meios industriais de reprodução e comunicação audiovisual: o rádio e o cinema. A autêntica cultura dos autênticos valores do povo definia a autêntica finalidade dos meios técnicos de vanguarda e sua indução global “até a última aldeia campesina” (4). No mesmo sentido, os ícones híbridos da cultura comercial latina, esgrimidos durante as décadas do Postmodernism norte-americano como panacéia ilusória, traçaram uma frágil linha divisória entre a ameaçada sobrevivência política e social das culturas latinas das Américas, e as estratégias do “multiculturalismo hegemônico corporativo ou governamental” (5).

A síntese de um historicismo essencialista, fundamental e fundamentalisticamente simulador, por um lado, e os simulacros da indústria cultural, por outro, fecha um círculo mágico. E no centro deste círculo se levanta o kitsch como a forma expressiva de sua falsidade histórica. Certamente, o conceito de kitsch é complexo. No contexto da Pop culture e do Postmodernism tem sido novamente legitimado em nome de uma dupla redução. Tem sido contemplado formalisticamente sob a perspectiva esteticista da montagem semiótica, do hibridismo lingüístico ou do pastiche simbólico, e sob o complementar princípio populista segundo o qual tudo o que se consome de forma massiva é popular e, portanto, democrático. Ou seja, se legitimou o kitsch porque é a manifestação acabada de um design lingüístico altamente formalizado e completamente vazio de referentes e de experiência, pois já são paraísos híbridos da Coca-Cola ou dos slogans fundamentalistas da Guerra contra o Mal. O kitsch é a autêntica expressão estética da cultura democrática na era de sua desconstrução performática como evento eletrônico e como espetáculo acomodado.

A crítica ao esteticismo fascista feita por Walter Benjamin coloca uma visão interessante sobre este fenômeno moderno e pós-moderno. Kitsch é a representação virtual da individualidade irredutível do objeto artístico através daqueles mesmos meios de sua produção e reprodução técnicas que a suprimem no final das contas. Este caráter fictício e falso da individualidade tecnicamente performatizada se reverte em duas características elementares, de acordo com essa mesma crítica: a “pobreza da experiência” que pressupõe e induz, e o predomínio do “aparato”, ou seja, das superestruturas técnicas e organizativas que intervém na performatização da obra de arte e de suas linguagens estereotipadas (o que compreende desde os softswares até a administração acadêmica ou mercantil da crítica, sob qualquer de suas especialidades).

O meio no qual Benjamin expôs esta crítica da banalização da experiência na sociedade industrial foi o filme (6). O caráter singular e irrepetível da interpretação e do intérprete teatrais é substituído no filme pela montagem, ou seja, pelo aparato, no duplo sentido de um deus ex machina e do sistema técnico de produção do real, como foi definido pelo cinema soviético de vanguarda de Eisenstein ou Vertov (7). Com isso a reprodução técnica anula aquela unidade intelectual e expressiva da interpretação através da individualidade única e irrepetível do ator, fato que definia o significado artístico elementar do teatro. Só que esta supressão técnica da aura individual da obra de arte tem sido precisamente o ponto de partida da indústria do cinema, que a recupera ato contínuo como performance virtual do heróico, como ficção do sagrado, enfim, como aquele espetáculo global que confere à indústria cultural moderna e pós-moderna a imagem de uma “fábrica de sonhos”, para usar a delicada metáfora de Ilja Ehrenburg (8).

Mas Benjamin não utilizou apenas a comparação entre o teatro tradicional e o filme moderno para reconstruir a pobreza da experiência como categoria estética central da cultura industrial. Esta crítica da pobreza estética está programaticamente ligada aos manifestos do funcionalismo e do Movimento mudança política e civilizatória. Colocava à luz a transformação do poder político em um fenômeno estético e virtual através dos meios técnicos de sua reprodução e difusão técnicas. Cultura industrial, racionalização técnica e comercial das linguagens, e empobrecimento da experiência fechavam um círculo maldito. E a este círculo Benjamin definiu como o fascismo moderno. Não tenho que recordar que este momento central e explicitamente formulado como programático no famoso ensaio sobre a obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica foi amplamente escamoteado pela crítica pós-moderna, dadas suas implicações conflitivas com as novas formas de poder totalitário que atrapalhavam seus sonhos narcisistas de paraísos eletrônicos. A partir do horizonte delineado pela crítica estética de Benjamin, o fascismo é um novo sistema totalitário de dominação surgido a partir da implosão dos meios técnicos de comunicação; mas um sistema esteticamente perfomatizado precisamente como cultura popular, seja sob os valores essencialistas do sangue e da terra, seja sob as linguagens populistas do kitsch industrial.

Esta crítica política do kitsch não era nova. Schinkel e Schiller a haviam adiantado em outras palavras: como a visão negativa de uma futura civilização que eliminaria a experiência artística em nome de uma racionalização estética da organização industrial da existência humana. Morris introduziu a mesma crítica do empobrecimento estético da sociedade industrial em uma perspectiva socialista e humanista. Nietzsche viu na bravata e na trivialização da tragédia grega, presentes nas últimas óperas de Wagner, uma antecipação da síntese do mau gosto e dos genocídios industriais que caracterizam a história européia do século 20, e não somente a européia, e não somente a do século 20.

Mas nem tudo é sombrio nas expressões da arte popular da sociedade industrial e pós-industrial. Alguns aspectos elementares colocam em evidência contrastes iluminadores entre os valores da Pop Art, as estratégias da Volkskultur nazista ou do populismo do realismo social. De Mickey Mouse a Ronald McDonald, o kitsch industrial se implantou como um novo realismo estético e eixo configurador da vida cotidiana (9). De acordo com um juízo amplamente compartilhado nos círculos acadêmicos pós-modernistas, as latas de tomate e o sexappeal das banheiras do Pop haviam emancipado a sociedade capitalista tardia das coerções de uma cultura superior já muito degradada em derivados comerciais de óperas e concertos clássicos, que funcionam como entertainment e relax. Esta efetiva função, que poderíamos chamar de socializante e emancipadora, a faz compartilhar amplamente da galáxia Pop com as promessas de redenção da decadência burguesa através do kitsch soviético e nacional-socialista. Os ícones nacionalistas foram outra constante na produção cultural dos totalitarismos europeus do século 20. Sem dúvida, de Tom Wolfe a Jasper Johns, estes símbolos patrióticos constituem também um motivo fundamental do Pop. A “ilimitada distribuição” dos cânones do desenho comercial se elevou igualmente a demonstração final da popularidade do Pop (10). Mas este era precisamente a velha máxima nacional-socialista e comunista segundo o qual somente suas antenas de rádio e seus símbolos poderiam chegar efetivamente até a última aldeia campesina.

Contudo, é preciso considerar uma diferença: a ironia que atravessa a todas as manifestações da Pop Art, sem exceção, desde as máquinas de guerra de Jean Tinguely às representações da felicidade doméstica de Richard Hamilton, passando pelo manifesto antiarquitetônico de Robert Venturi. Essa ironia lhe distingue ostensivamente da rigidez militar e da seriedade monacal de fascistas e social-realistas. Claro que não se pode ignorar que essa celebrada ironia acobertou o absurdo de representar uma caixa de detergentes como um objeto mágico ou de elevar uma bandeira nacional de acrílico a uma patética categoria do sublime. E de legitimar com isso sua devastadora proliferação como princípio único formador das expressões estéticas em todos os malls e suburbios de um recolonizado Terceiro Mundo. Tampouco é imprescindível lembrar que no final das contas esta ironia não cumpriu mais o objetivo precisamente oposto que perseguia a estética do shock do Dadaísmo. Se este tentou desmistificar os ícones e os mitos do poder com atos vulgares de violência artística, o Postmoderntratou logo de ressacralizá-los nos salões de uma cultura integralmente acomodada, entre suspiros de tédio e cínicos sorrisos.

Outros aspectos distinguem ainda o Pop. Sua pose iconoclasta é um deles, como o é também seu ecletismo estético, o seu credo anti-essencialista, e seu espetáculo multiculturalista, enfim, sua gesticulação neovanguardista. O Pop deve ser entendido neste sentido como uma renovação sui generis da revolução estética das vanguardas européias e americanas anteriores a 1945. Transformou a revolutión surrealiste na retórica do espetáculo (Andy Warhol), reduziu o anarquismo estético dos dadaístas berlinenses a uma técnica de reclame comercial (Roy Lichtenstein), reintroduziu a experimentação formal das vanguardas históricas européias através de um bazar de linguagens mediáticas recicladas (Robert Rauschenberg), e trocou a crítica revolucionária da arte como reino separado da beleza em um culto do “folksy” e do trivial, sob o princípio realista do consumo, e sua transcendência espiritual sob a unidade acabada do fetichismo mercantil e pornográfico (Tom Wesselmann, Eduardo Paolozzi, Allen Jones, etc., etc.) (11).

O Pop elevou um conceito de popular ao mesmo tempo despojado de suas memórias e de suas formas de vida, e o esvaziou daquelas dimensões profundas da experiência artística não redutíveis às modernas epistemologias hiper-tecnológicas ou às ontologias deconstrucionistas dos simulacros mediáticos. E o fez inclusive ali aonde roçava as fronteiras das culturas chicanas, latinas ou afro-americanas, ou seja, nos borderlands do colonialismo pós-industrial. Subtraiu as formas de vida e as memórias ligadas ao popular com recicladas categorias coloniais de mestiçagem ou hibridismo, cujo denominador comum tem sido invariavelmente a redução da experiência estética a uma sintaxe formalista e a exclusão programática de qualquer dimensão espiritual. O Pop é a transição da cultura artística moderna, definida por artistas como Picasso, Schoenberg ou Guimarães Rosa, à trivialidade eletrônica da cultura digital.

Nenhuma destas categorias correntes do popular assume seu caráter de legado e de sobrevivência de conhecimentos, técnicas e formas de vida muitas vezes milenares. Poucas vezes as aproximações estéticas ao popular assinalaram o significado civilizatório de seu prolongado choque com a expansão colonizadora da sociedade industrial e pós-industrial. Não se insiste suficientemente no papel central que as diferentes expressões do popular desempenharam na crítica da modernidade, veiculadas por artistas e intelectuais tão distantes entre si, mas tão centrais no pensamento moderno, como é o caso de Ernst Bloch e Mário de Andrade, passando por uma infinidade de pintores dos três continentes, pela música de vanguarda, ou pela teoria crítica da civilização industrial.

Muitos devem ser os caminhos que permitam reposicionar a autonomia cultural e política destas culturas populares, e resgatar seus significados tanto estéticos como comunitários. Um deles, no qual quero me deter brevemente, assinala as filosofias hermenêuticas da Ilustração, e de uma maneira particular, alguns motivos da filosofia da cultura de Johann Gottfried Herder ou de Giambattista Vico.

Vico descobriu que as fábulas e os mitos se encontravam nas origens históricas do que as filosofias da Ilustração entenderam como civilização. E afirmou que só a partir destas tradições antigas, que se confundiam de forma precisa com as memórias e conhecimentos poéticos, poderia se compreender histórica ou hermeneuticamente a nossa própria cultura moderna. Um dos motivos centrais da argumentação de Vico contém, além disso, um interesse imediato no contexto de nossa discussão em torno da estética do popular. Trata-se de sua teoria da metáfora. Ao contrário da retórica escolástica, que definia formalisticamente a metáfora a partir de uma estrutura lógica da linguagem, Vico recordava sua origem na “natureza simpatética” inerente aos saberes mitológicos antigos. A metáfora, considerada como a forma mais elementar da expressão artística, manifestava, em primeiro lugar, a origem mimética da linguagem como expressão de uma relação animada do humano com as coisas (12).

Herder escreveu a partir de uma perspectiva similar. As memórias das culturas antigas, suas lendas e conhecimentos, “tem se refugiado voluntariamente, ao longo do tempo, nas poesias de pastores, camponeses e pescadores, ou seja, naquelas sociedades nas quais a natureza inocente podia reinar sem necessidade de uma arte política” (13). Esta “natureza inocente” (um sugestivo conceito quando se é considerada da perspectiva contemporânea da destruição completa do ecossistema planetário) é o mundo animado dos mitos antigos e das lendas orais. E o valor da filosofia da cultura de Herder reside não somente no reconhecimento destas formas de conhecimento da natureza e da existência humana, mas também em mostrar que constituíam os fundamentos poéticos nas quais se assentavam as culturas européias. A partir de seus legados se havia originado a gaia ciência dos gregos e dos árabes, segundo descreve em suas Briefe zur Beförderung der Humanität [Cartas sobre o desenvolvimento da humanidade]. E foi a partir destas formas sofisticadas de expressão e de pensamento radicadas na Grécia antiga ou no Al-Andalus medieval que os povos bárbaros da Europa evoluíram até as formas de civilização artística e filosófica do Renascimento.

Esta valorização das tradições culturais, que o racionalismo ilustrado em um primeiro momento e o positivismo mais tarde desprezaram como insignificantes, não deve ser compreendida de modo algum de uma perspectiva evolucionista ou progressista que esta mesma tradição racionalista e tecnocientífica herdou do provindencialismo apocalíptico cristão. A revelação feita por Vico das culturas, dos cultos e dos conhecimentos da humanidade antiga estava atravessada por uma veemente crítica desta construção linear do tempo histórico. E Herder falou expressamente da idéia de progresso da humanidade como um engano. Ao contrário dos enciclopedistas franceses, chamava de perfeição humana e cultural ao cumprimento não de uma ordem temporal virtual, resultado da progressiva domesticação da natureza humana, mas àquilo que um indivíduo humano ou uma cultura deveriam e poderiam ser por si mesmos, de acordo com um radical princípio de autonomia das diferentes culturas e de seus respectivos meios de expressão e reprodução (14).

Este reconhecimento da pluralidade das culturas como formas de vida históricas existentes por direito próprio não é equiparável, contudo, ao conceito ilustrado de tolerância. Desde o colonialismo europeu do século 18, o princípio jurídico de tolerância significou a equiparação de todas as culturas a um mesmo padrão racionalista como condição de sobrevivência de seus membros, reduzidos à categoria abstrata de sujeitos lógicos e indivíduos econômicos. Tampouco significa um multiculturalismo aberto às diferenças entre as civilizações históricas a ponto de reduzi-las a sistemas lingüísticos, ícones e textos, e, ao mesmo tempo, fechado às condições ecológicas, às formas de vida e às formas materiais de produção subjacentes a estas diferenças simbólicas. O conceito de cultura de Herder compreende, pelo contrário, as memórias dos povos e suas expressões artísticas como um momento indissolúvel de suas formas de vida e de sua sobrevivência. É importante recordar que tanto Herder como Vico compreenderam a fundamental interação entre a memória cultural e a constituição do ser histórico dos povos. Ambos construíram um conceito de cultura que não se deixa reduzir a uma estrutura formal de representações segregadas da comunidade humana, de suas práticas políticas, ou de seus meios de produção e sobrevivência. É uma compreensão cultural ou civilizatória que integra os aspectos produtivos e reprodutivos da vida cotidiana, com os cultos religiosos e as linguagens metafóricas, e une os conhecimentos técnicos e produtivos com os valores expressivos, como um todo integrado e indissolúvel. E que nesta mesma medida permite inserir a criação artística como elemento central e inseparável dos saberes, técnicas e formas de vida de uma comunidade histórica determinada (15).




3

Em algum momento nossa viagem chegou a seu destino. Ulisses nos recebeu solenemente. Nos ofereceu sua casa. Respondeu a nossas perguntas. Mostrou suas cerâmicas. Mas ao inquirir sobre seu processo criador nos espetou brutalmente: “Vocês não acreditam em deus!”

Segundo o testemunho de Lélia, que ao longo de uns vinte e cinco anos assistiu às suas agruras e às de sua família, e catalogou e promoveu seu trabalho artístico, Ulisses havia sido vítima durante quase um ano dessas missões evangelizadoras corporativamente patrocinadas com o propósito de fragmentar religiosamente as comunidades africanas e indígenas da América Latina, e facilitar sua colonização pelos valores éticos do capitalismo global. “Não me fariam essas perguntas se acreditassem em deus”, repetiu para nossa consternação. Sem dúvida, não sentíamos que esse nome de deus tivesse sido invocado como uma instância dogmática e punitiva, ou como um princípio autoritário e excludente de identidade ligado a qualquer tipo de privilégio metafísico ou social. O deus de Ulisses parecia estar mais próximo da substância de Spinoza do que do “Único e Verdadeiro” dos catecismos da propaganda cristã. Deus como o ser que subjaz e sustenta aos existentes, sejam eles humanos, animais ou coisas, sob a indissolúvel unidade do sagrado, cuja expressão mais autêntica é precisamente a obra de arte. “Se acreditassem em deus – nos acabou exortando Ulisses – vocês não estariam aqui, me perguntando se podem ou não podem reproduzir estas peças ou minhas palavras. Se realmente acreditassem, caminhariam mato adentro e escutariam às árvores, aos sapos e às pedras, e lhes falariam, como eu lhes falo. E aprenderiam a escutar a estas figuras vivas que eu faço com o barro e com minhas mãos”. E em duas palavras resumiu o processo criador da obra de arte como o ato que fechava a criação divina do universo na unidade harmoniosa do cosmos.

Ulisses nos mostrou uma escultura que constava de três patas de mamífero, o tronco e a cabeça de uma rã, e outras duas cabeças, de pássaro e de serpente respectivamente, que emergiam de suas costas. “É a Metamorfose”, esclareceu. De fato, um híbrido, a metade pássaro ou réptil, e a outra metade um vegetal. Era um imaginário animal protéico com rostos antropomórficos. “Estão vivas e falam” – acrescentou, aludindo às múltiplas cabeças. “Suas vozes são as dos animais e das plantas que me falam, e a recordação que tenho dessas vozes em meus sonhos”.

Nas palavras de Ulisses, a forma destas esculturas está animada por uma vida espiritual própria. Mas esta percepção animista da obra artística não deve ser considerada nem como uma projeção subjetiva, no sentido em que o imaginava a psicologia positivista, nem tampouco ser reduzida às categorias de dinamismo espacial e transformação formal do que constitui a expressão popular por antonomásia da indústria cultural moderna: os animated cartoons de Disney. Representação sobrenatural tampouco é um conceito apropriado. Ulisses não parte de uma natureza objetivada com obediência às categorias mecânicas da física newtoniana, e por decorrência é completamente alheio à concepção complementar de uma natureza segregada como realidade transcendente. Suas esculturas devem ser mais bem compreendidas como expressões daquela “força” ao mesmo tempo física e espiritual que as filosofias tecnocientíficas recusaram da experiência cognitiva a partir da teoria do conhecimento de Bacon e da física mecanicista de Newton. São expressões daquele princípio energético e misterioso que constitui o centro da experiência chamânica do real, dos rituais religiosos antigos e da contemplação estética em um sentido rigoroso. Por outro lado, esta compreensão animada da realidade remete à estrutura de uma experiência profunda que envolve ao mesmo tempo os extremos da observação objetiva e a experiência religiosa. “São palavras invisíveis”, dizia Ulisses a propósito de suas esculturas. Sua reiterada insistência no secreto, no imaterial e no invisível tem que ser vista como alusões a uma experiência contemplativa que esbarrava na visão mística.

Poderia-se dizer que suas figuras de barro são ídolos. Mas correríamos o risco de devolver a esta palavra os significados que lhe foram incutidos pelos tribunais da Inquisição, e que o positivismo científico vetou um pouco mais tarde. Suas figuras são ídolos porque seu significado não reside em sua forma imediatamente perceptível pelos sentidos, nem tampouco em sua estrutura lingüística ou em sua realidade performática, como pretendia Platão em seu mito ilustrado da caverna idolátrica e em sua teoria do eidolon. E como o nominalismo mediático do espetáculo e do consumo pós-modernos assumem sem maiores sutilezas. O valor artístico destas figuras se encontra do outro lado do formalismo esteticista e do nominalismo lingüístico inerentes a nossa civilização mediática. Ulisses dizia que suas esculturas falavam. Seu significado profundo não reside em seu aspecto visível, mas em suas vozes. E as vozes que pronunciam os seres que não falam nunca podem ser somente sons. Constituem uma imagem intelectual e nas tradições da mística oriental ela tem sido definido com uma série de metáforas que aludem ao transcendente. Remete-se a uma intensidade espiritual e emocional secreta. Pertence à esfera do sagrado.

A propósito da abstração formal das esculturas da arte tradicional africana, o poeta e crítico expressionista Carl Einstein formulava em 1915: “o que aparece como abstração é natureza imediatamente dada”, é “o mais intenso realismo”. Só para completar, seguindo a fórmula, diríamos que esta abstração realista ou o realismo abstrato desta arte chamada primitiva não procurava em nenhum momento um efeito plástico, muito menos uma dimensão representativa ou performática. Sua eficácia emocional e existencial residia em uma percepção intuitiva, espiritual e interiorizada. Por isso Einstein recordava: “os ídolos só deveriam ser adorados na obscuridade” (16).

Esses ídolos não são representações “separadas” de uma natureza “mágica”. Não são construções de uma realidade lingüística autônoma. Não são ícones. Sua matéria e sua forma são em si mesmas uma experiência profunda da vida e da morte, dos ciclos cósmicos e da experiência do sagrado. Sua força expressiva não é uma dimensão agregada à sua realidade material tangível. É imediata. Se sente e se apalpa como algo anterior na ordem temporal e da experiência à constituição discursiva da representação. Isso foi entendido precisamente pelos artistas modernos como Kandinsky e Schoenberg, para quem a tonalidade colorística possuía em sua materialidade artesanalmente criada uma dimensão espiritual própria que a nova arte devia resgatar. E também compreenderam artistas como Itten ou Dubuffet, que na imediata materialidade das cores e texturas descobriram o meio de uma intensidade cognitiva e expressiva desconhecidas pelas correntes naturalistas e impressionistas que lhes precederam. Nessa unidade dos elementos materiais mais simples e em suas dimensões expressivas e espirituais repousam precisamente o conceito moderno de abstração. Uma abstração que não se reduz a uma fórmula matemática. Mas sim um conceito de abstração que, tanto para o artista chamânico como para a estética do expressionismo do século 20, não se opõe à realidade mais concreta de nossa experiência cotidiana das coisas, mas à sua trivialização esteticista, que o século 19 celebrava sob o academicismo naturalista e nas últimas décadas do século 20 se tem aplaudido em nome do hiperrealismo digital.

Ulisses nos mostrou em certo momento uma cabeça antropomórfica. Disse que era o Apocalipse porque em seus sonhos via este rosto quando pensava no fim do mundo. Chamou-me a atenção a semelhança dessa peça com algumas máscaras africanas que guardava em minha memória. Certamente os materiais e as linguagens eram diferentes. Mas as esculturas de Ulisses respondiam a uma mesma pureza de meios, a uma intensidade formal similar, com idêntico rigor compositivo e uma mesma concentração expressiva. Apesar de seu realismo, a figura daquele “Apocalipse” era abstrata. E isso é também o que queria dizer Einstein sobre a arte africana e sua centralidade na estética dos expressionismos europeus modernos. Seus traços mais sensuais e tangíveis, como pode ser o erotismo das formas ou a vibrante rugosidade das texturas, são, ao mesmo tempo, abstratos porque transmitem uma intensidade emocional e espiritual imediatas e, portanto, puras. Ou, para dizer de forma mais exata, são expressões não mediadas por uma função performática. Por isso são ídolos. Porque são objetos dotados de uma força por definição invisível.

Em seus ritos de iniciação, os chamãs são obrigados a aprender a linguagem dos animais. A “descida dos espíritos” acontece precisamente como um canto em público no qual o futuro chamã emite os uivos ou rugidos, gemidos e bufos de diferentes animais, para consternação da audiência. Esta linguagem sagrada dos animais possui também um caráter oracular (17). E também as lendas de animais que falam como humanos e de humanos metamorfoseados que se expressam na linguagem dos animais se reiteram profusamente na literatura oral e nas tradições populares de América Latina. O artista brasileiro Joel Borges é o autor de um esplêndido livro de gravuras e poemas cujo título se refere a essa idade de ouro: No tempo em que os animais falavam, segundo relatam as lendas populares da região do Ceará. O pintor Francisco Toledo representou este mesmo intercâmbio entre uma natureza animista e uma humanidade espiritualizada, em uma série de gravuras e ilustrações de contos tradicionais zapotecos. Outros muitos exemplos podem ser citados neste sentido.

Em nossa última visita, Ulisses nos mostrou uma peça de porte impressionante. Contava com um braço alargado que descrevia uma forma oval sobre uma base esférica e em cujas extremidades afloravam uma série de pequenas cabeças antropomórficas. Iconograficamente era uma variação do motivo da árvore da vida, um motivo que se repete profusamente nas culturas antigas e populares de América Latina até a dia de hoje. Lélia me sugeriu serem vestígios rituais das culturas africanas ou mais especificamente da lenda da árvore sagrada Iroco, considerada como um orixá nos cultos afro-brasileiros, e que possui poderes mágicos e propicia desejos, mas que, contrariado, pode causar grandes danos aos humanos (18). A base desta escultura tinha forma de cabaça, que na tradição indígena é o receptáculo do sagrado. Desta base se desprendia um ramo arqueado, e dela, as cabecinhas ou máscaras antropomórficas. “Não ouvem suas vozes? E o quê eles estão dizendo?”, nos perguntava Ulisses.

Com estas observações não pretendo defender um vitalismo estético o um misticismo sui generis. Entre outras coisas porque o vitalismo e o misticismo foram amplamente estereotipados nas culturas mediáticas do século 20 como complemento dos processos de racionalização industrial e banalização comunicativa, e condicionados ao empobrecimento sensorial, intelectual e espiritual que acompanha o processo. Não quero tampouco me aproximar nostalgicamente de um último artista da selva para radicalizar ainda mais a viciosa construção acadêmica do popular como alteridade imaginária das orgias de cinismo burocrático que define institucionalmente a produção artística classificada como pós-moderna. O que me parece importante é assinalar uma forma específica e profunda da experiência artística. E de fazê-lo através de uma obra que não é nem mais nem menos popular do que a de Juan Gris ou Käthe Kollwitz. Além disso, me parece importante chamar a atenção sobre os nexos entre uma arte como a que realiza Ulisses, e determinados artistas e correntes modernos marginalizados pelas predominantes epistemes tecnocêntricas, assim como pelos populismos comerciais das neo-vanguardas e pós-vanguardas do século 20. Não destaco estes pontos de encontro como coincidências conjunturais, mas os considero como uma comunhão programática de princípios filosóficos ou cosmológicos.

Um breve parêntese sobre a experiência mimética talvez possa nos aproximar de uma maneira mais precisa desta dimensão “viva” e “invisível” que as esculturas de Ulisses pretendem. Mimese se confunde com a categoria de imitação. Ela tem sido definida como reprodução naturalista da natureza ou do real. Dentre os equívocos que rodeiam as definições modernas da experiência mimética, o mais comum consiste precisamente em subordiná-la a um conceito de objetividade que na realidade é constitutiva da física newtoniana e da epistemologia kantiana, mas não do “realismo” artístico em um sentido suficientemente amplo da palavra, que serve para compreender a escultura japonesa do período Heiam ou a pintura do Renascimento italiano. Sem dúvida, é sob este princípio de objetividade naturalista e mecânica que Apollinaire e a crítica cubista e pós-cubista condenaram programaticamente a “mimese”. Mais ainda. Grande parte do racionalismo estético identificado com o Movimento Moderno, o funcionalismo e o construtivismo do século 20, se desenvolve precisamente desta interpretação insípida da mimese como reprodução naturalista.

A experiência mimética não pode ser definida como uma cópia, uma duplicação ou uma simples imitação da natureza. Mimese não significa uma reprodução intelectual, manual ou técnica do real. E não pode sê-lo porque histórica e cognitivamente a palavra mimese designa uma experiência anterior à constituição desta natureza como realidade objetiva e portanto separada de nossa própria existência. A experiência mimética se remonta necessariamente a uma relação com a “natureza” anterior à separação discursiva entre sujeito e objeto; e anterior ao desencantamento da “natureza”, primeiro sob os auspícios da filosofia agostiniana da culpa, e mais tarde sob a construção mecanicista do universo newtoniano.

Devemos à teoria da linguagem humana no paraíso, de Walter Benjamin, uma definição desta mimese. A filosofia da experiência artística da natureza de Dewey aborda a mimese sob uma dimensão semelhante (19). Os ensaios de Paul Klee oferecem uma explicação dos caminhos da percepção da natureza sob esta mesma orientação. Mas é a Farbenlehre (Teoria das cores) de Goethe a que arroja uma construção epistemológica mais sistemática e mais ampla para a compreensão desta experiência mimética. Quero destacar a este propósito um aspecto muito simples: a compreensão do sujeito da percepção, o ato de perceber e seu objeto, ou seja, a luz e a cor, como três momentos dinâmicos de um processo interativo, não como instâncias lógica, epistemológica e fisicamente separadas do processo constituinte do conhecimento objetivo. “O olho tem que agradecer sua existência à luz. A partir de indiferenciados órgãos auxiliares animais, a luz acabou gerando um órgão próprio que não tem outro igual...” (20). As cores existem para o olho, porque o olho humano se desenvolveu no meio da luz e da cor, e este enunciado de Goethe evidencia que a percepção mais simples do mundo que nos rodeia, que é um mundo de luzes e cores, entranha necessariamente uma comunidade ontológica de todos os seres. Mimese é a experiência humana do existente no meio desta unidade ontológica que compreende a ambos. Mas expressa também a dimensão espiritual que atravessa esta continuidade ontológica.

Nesta sumária revisão conceitual desejo mencionar um dos cumes da cultura européia: a obra de Ibn ‘Arabi. De fato, a explicação mais precisa de uma experiência criadora como a que nos relatou Ulisses só podemos encontrar na obra deste filósofo e místico. Tratarei de resumi-la brevemente. Para Ibn ‘Arabi, a criação artística (takwín) é uma experiência na qual se manifesta uma dimensão arquetípica do ser. Sem dúvida, esta experiência arquetípica não é uma construção lógica originária no sentido do idealismo transcendental. Não pressupõe a atividade constituída ex nihilo de um demiurgo, gênio criador, o sujeito artístico ou intelectual equipado com poderes constituintes mais ou menos absolutos, no sentido em que foi concebido pela arte moderna de El Lissitzky a Andre Breton. Ao contrário, Ibn’Arabi concebia o mundo físico como uma realidade dinâmica animada por um princípio espiritual autônomo. Sua teoria da criação partia de um artista que não estava talhado sob o padrão do demiurgo cristão-platônico, ou seja, sob o princípio originário que manipula o real sob seu poder divino, artístico ou lógico. Na concepção filosófica de Ibn’ Arabi, este artista assumia melhor o papel “passivo” da contemplação do ser que se revela nas coisas. E o ato criador significava para ele uma experiência contemplativa na qual se manifesta a possibilidade do ser inerente ao existente. Esta experiência reveladora se encontra próxima de um nada originário, mas entendido em um sentido afirmativo como reconhecimento da possibilidade invisível e oculta deste ser das coisas (21).

O enunciado de Klee, segundo o qual a arte não representa o visível mas que faz visível a realidade invisível e profunda do ser, se encontra muito próxima desta concepção mística (22). Nas artes performáticas do Japão, a mimese (modoki) é considerada em um sentido próximo, como compreensão hermenêutica da origem, e se relaciona com as funções do intérprete e do demônio (23). Esta categoria também se aproxima mais à compreensão da experiência criadora de Ulisses do que aos conceitos modernos de imitação como reprodução fotográfica ou digital do real.

O barro é o material que Ulisses utiliza em suas esculturas. Mas este barro é a mesma terra que lhe dá sustento. “Utilizar” não é a palavra adequada, uma vez que essa terra não é apenas um fato utilitário. Não é um instrumento. É terra fértil. É o fundamento material de seu ser. É o princípio inerente a todos os seres, animais ou vegetais que o rodeiam. Em suas obra o artista revela uma parte das potencialidades dessa terra. Por isso o processo formal que se cristaliza no objeto artístico não pode descolar-se de uma “natureza” externa, muito menos se opor a ela. Por isso o processo criador presente nesta experiência artística não pode assumir um conceito objetivo do real. Por isso o conceito estético de representação não se aplica a este processo criador. E por isso tampouco se aplicam as categorias interinas de realismo ou abstração. A criação da obra de arte é antes de tudo uma extensão do próprio ciclo de criação da terra, da matéria ou da natureza. Não a reproduz em uma segunda realidade sui generis: um reino transcendente da beleza ou da realidade prenhe de simulacros. É uma extensão dos ciclos de criação da natureza, que ao mesmo tempo lhes dá um significado espiritual compreensível a nossa experiência. Ciclos nos quais não se podem traçar-se limites precisos entre geração material da terra e criação artística propriamente dita, entre natureza e espírito, nem entre a obra de arte e a existência humana. Esta continuidade indefinida que vincula a natureza e a obra de arte é o processo criador.

Ulisses contudo nos fazia ver algo mais. Nos mostrava suas esculturas não como um produto acabado; não como um objeto no sentido epistemológico, técnico e mercantil da palavra. Suas cerâmicas, pelo contrário, se acham imersas em um processo perpétuo de mudança, onde as mesmas formas fixadas no barro metamorfoseavam seu significado, e os próprios significados mutantes transformavam virtualmente suas formas. É justamente a esse processo indefinido de diálogo e de mútua transformação que se referia o artista quando chamava a suas obras de “natureza viva”.




4

Magia, animismo, contemplação mística, mimese... com estas categorias só pretendo me aproximar, tateando, da experiência que Ulisses nos transmitia direta e indiretamente ao longo de nossas sucessivas entrevistas. Com elas trato de estabelecer um marco para um possível diálogo com sua obra a partir das concepções artísticas mais sensíveis dos séculos 19 e 20, e de nossa própria condição de sujeitos perdidos no horizonte de uma irrevogável crise civilizatória. Quero chamar a atenção para uma dimensão profunda desta experiência artística confinada no campo do “popular”. E quero destacar seu valor comunitário em um sentido diametralmente oposto ao que lhe atribuiu o logocentrismo colonial, tanto em suas formas teocráticas de ontem, como em suas expressões digitais de hoje.

Para a concepção cultural dominante do mundo ocidental, que em primeiro lugar se evidencia nas instituições acadêmicas e museológicas, a arte assim chamada popular é a manifestação estrutural de um sistema coletivo de valores, carentes de uma dimensão propriamente individual, de uma vontade expressiva própria e de um valor espiritual transcendente. Por isso as obras de arte popular e étnica se confinam em museus e departamentos de antropologia e folklore. Não são expostas em museus ou departamentos de arte. Esta crônica tenta explodir pelos ares tão ridícula perspectiva logocêntrica. De um lado, procurei evidenciar a dimensão individual profunda da experiência artística de uma obra como a de Ulisses. De outro, assinalei seu significado espiritual capaz de ser fator de integração das comunidades populares: ou seja, esses povos latino-americanos e do Terceiro Mundo compartilham uma memória e um espaço geográfico comuns, e se encontram expostos a um processo persistente de colonização, que compreende desde a subtração contínua de suas memórias até a destruição sistemática de seus habitats naturais e formas de vida.

Esta dimensão espiritual e comunitária explica o último e o mais importante motivo desta crônica. Explica a recusa de Ulisses em ser filmado, sua negação a toda forma de reprodução digital de sua pessoa, de sua família e de sua arte. Explica de forma convincente sua recusa de qualquer outra forma de comunicação que não se articulasse diretamente com a presença espiritual de seus objetos. Mais ainda, é a partir desta dimensão transcendente que pode se compreender o seu repudio pela reprodução técnica, um último ato de resistência à volatilização eletrônica de sua própria vida e da sobrevivência das comunidades populares em um sentido geral.

Quando insistimos em gravar nossas entrevistas, Ulisses nos replicou: “O que digo aqui quer dizer uma coisa. Escrito e impresso significa algo diferente”. Tão logo pronunciou estas palavras, saiu de seu quarto e dirigiu-se até um velho baú oculto debaixo de algumas mantas, de onde retirou um periódico local, desgastado pelo tempo. Próximo da luz que entrava pela janela e, assinalando com o dedo um determinado parágrafo, pediu à sua filha que o lesse em voz alta. A crônica em questão era uma das poucas, talvez a única entrevista que Ulisses havia oferecido aos jornalistas, antropólogos ou marchants que lhe haviam visitado. Nela se dizia, em resumidas palavras, que Ulisses era um artista muito original, que falava com os animais e plantas, e fazia cerâmicas surrealistas. “É falso!”, gritou com ira.

A falsidade da crônica residia na correção gramatical e sintática das próprias palavras de Ulisses. Enraizava-se no processo interpretativo que mediava sua edição para a um público leitor inespecífico. E enraizava-se também na própria simplicidade do jornalista. Mas o protesto de Ulisses aludia a algo mais elementar. Não se tratava somente da literalidade do texto. A questão principal era a conversão da palavra em escritura. Conversão escritural marcada por deslocamentos sintáticos e semânticos, pela eliminação de momentos expressivos e pela abstração da presença das coisas e dos humanos que se encontram inextricavelmente unidos na comunicação falada. A falsidade da reprodução não era somente o resultado da manipulação mediática dos signos da escritura, mas, em primeiro lugar, do esvaziamento da experiência cristalizada nesses signos. “Arte é experiência”, repetia Ulisses várias vezes. “É a experiência do invisível”. E logo completou: “Não quero entrevistas porque minhas palavras são invisíveis”.

As “palavras invisíveis” são as vozes imediatamente ligadas à presença do existente. São ao mesmo tempo as “visões” associadas a estas palavras e à experiência profunda das coisas. Assinalam a dimensão misteriosa inerente a toda autêntica obra de arte. Ao mesmo tempo, estas palavras invisíveis são as palavras compartilhadas pela comunidade que as escuta e as compreende. As “palavras invisíveis” são a expressão ao mesmo tempo individual e comunitária de uma linguagem poética de formas, palavras, sons ou gestos não redutíveis à escritura. Não conformam um texto. E não podem se submeter a um sistema de códigos e representações porque são presenças irredutíveis em sua singularidade no espaço e no tempo.

Não posso resistir à tentação de duas citações. Dois testemunhos que se encontram significativamente nas margens da cultura ocidental moderna. Uma delas é a poética do Duende de Federico García Lorca. Esta categoria, um tanto aleatória, quis se relacionar com o idealismo irracionalista presente na teoria surrealista e pós-modernista dos simulacros. Outro erro. O Duende lorquiano é uma intuição estética formulada sobre a base de uma tradição mística sufista, profundamente arraigada na cultura religiosa espanhola até o século 16, e que ante as perseguições inquisitoriais da idade imperial se agregaram na cultura popular cigana como seu último refúgio espiritual. Lorca explicava em nome do Duende a manifestação misteriosa do transe espiritual no instante irrepetível da palavra poética, do movimento musical e do passo da dança flamengos. O Duende está ligado, além disso, a uma memória histórica comunitariamente compartilhada. E é também uma “palavra invisível”, ou seja, a dimensão invisível da linguagem poética ligada a uma experiência reveladora do ser na música e na dança (24).

A segunda referência não é menos importante: Paul Klee. Também Klee enraizava a experiência artística nas fronteiras entre o visível e o invisível. Em nenhum caso a obra de arte podia ser definida, de acordo com este artista, como uma simples réplica do real em um reino separado de representações. Sua famosa declaração de que a pintura não era uma reprodução do visível mas a visualização de uma realidade invisível pressupõe uma comunidade pré-lingüística entre a existência humana que vê, sente e concebe, e essa natureza das coisas percebidas. Uma mesma realidade subjaz ao humano e ao ser do existente. A obra de arte é antes de tudo, de acordo com a compreensão de Klee, a expressão sensível e espiritual deste fundamento ontológico comum.

Esta mesma comunidade ontológica do ser e sua expressão invisível explicam a resistência de Ulisses a qualquer forma de reprodução fotográfica ou digital. Já é hora de formular: desde a primeira até a última de nossas visitas, sua postura manteve a este respeito uma firmeza com convicção religiosa, no mais profundo, e portanto não-dogmático, sentido desta palavra. Ulisses não via na reprodução mecânica e digital um meio de conservação ou de preservação do existente, nem de sua pessoa ou de sua visão espiritual do ser. Ao contrário, sentia intuitivamente seu significado como meio de sua volatilização. A reprodução técnica significa a supressão da aura. Elimina a alma. Asfixia o princípio energético do vivente. Esse mesmo princípio que designavam categorias antigas como Brahma, Energeia, Ruah, Pneuma, Geist...

Associamos, é certo, esta mistura de receio e apreensão pela reprodução fotográfica ou fílmica a atitudes supersticiosas. Para sermos mais exatos, condenamos automaticamente esta classe de prevenções como uma categoria de superstição que de fato está arraigada nas antigas proibições inquisitoriais da experiência mística e na disciplina epistemológica do tecnocentrismo moderno que historicamente lhe sucedeu. Não deveríamos esquecer, sem dúvida, a violência colonial, cristã e ilustrada, que subjaz a esta categoria negativa de superstição. Também é importante recordar, por outro lado, que na cultura latina pré-cristã a palavra superstitio designava a mistura de temor e assombro diante do existente que distingue a toda experiência propriamente religiosa. Superstitio e religio eram conceitos precisamente sinônimos (25). O que a classificação da experiência do misterioso, do santificado e do sagrado sob a denominação negativa de ídolos e superstições deixa muito evidente é a história obscura de intolerância e violência que acompanha o processo civilizador. É o rosto oculto do conceito teológico e epistemológico de racionalização.

Tampouco quero deixar de mencionar que este temor à réplica fotográfica é inseparável da larga memória da perseguição sangrenta das quais estas formas antigas de conhecimento e de vida foram e continuam sendo objeto nos mais variados recantos do chamado Terceiro Mundo. No contexto das tradições místicas e chamânicas dos povos africanos e das civilizações indígenas de América, o medo à malversação das presenças sagradas, o horror à violação da energia espiritual humana e, não em último lugar, o temor à perseguição das experiências religiosas ou artísticas ligadas a estas tradições possui demasiados fundamentos.

Mas, contudo, é preciso assinalar algo mais. Provavelmente, o aspecto mais importante. A perseverante insistência de Ulisses na irredutibilidade da obra de arte individual como presença viva, que pode descrever-se a partir de categorias como mimese, animismo e magia, a falta de uma reconstrução mais precisa, desnudava alguns lugares comuns da comunicação digital pós-moderna. Descontextualização textual da experiência artística, o congelamento visual daquela “palavra invisível” que constituía seu centro nevrálgico poderiam ser os temas em questão. Mas há algo ainda mais elementar. Do seu ponto de vista, a cópia digital da obra de arte é uma fraude, na medida em que suprime suas qualidades sensitivas ligadas ao tato, à textura, aos odores, enfim, à presença física do existente. É uma fraude pois mutila sua realidade individual presente no conjunto dos sentidos da experiência individual, em um tempo e espaço irrepetíveis. É uma fraude porque, além de tudo, retira a obra de arte da comunidade na qual é criada, compartilhada e compreendida. Porque elimina aquelas características mais íntimas dessa memória comunitária, ligada às qualidades intrínsecas dos objetos, à presença humana em meio deles, e a suas dimensões expressivas compartilhadas. É uma fraude porque rapta da obra de arte seu significado espiritual mais profundo.

Tecnicamente falando, a tradução digital de um objeto é uma falsificação porque desloca e suplanta as condições sensoriais e espirituais de sua experiência individual por códigos, esquemas e modelos perceptivos predefinidos pelo software. Em segundo lugar, a reprodução e difusão digitais eliminam as dimensões individuais e comunitárias que cristalizam no meio desta experiência artística compartilhada. Assim como a obra de arte é reintroduzida na comunicação digital pelo objeto semiótico, predefinido e pré-desenhado como realidade virtual, também a comunidade que compartilha de sua experiência é substituída pela massa eletrônica. Uma massa fragmentada, hibridizada, despossuída de memórias e formas de vida compartilhadas. Massa estatisticamente definida e digitalmente volatilizada. Uma massa epistemologicamente degradada por esse mesmo software à condição de um voyeurismo sensorial e espiritualmente empobrecido.

Mas há um último aspecto da criação artística que a digitalização anula e descarta. Ulisses explicava seu trabalho criador como a revelação das vozes misteriosas do existente. O centro de sua experiência artística é a contemplação de uma terra criadora, uma natureza viva e uma realidade dinâmica que se oferecem como tais à experiência imediata. Esta relação criadora com as coisas é uma revelação espiritual do ser. A reprodução digital inverte seu sentido. A relação entre o humano e o cosmos se inverte diametralmente ali aonde a percepção artística é constituída pelo aparato administrativo e técnico inerente à reprodução digital. O lugar da apreensão artística do ser e da comunidade presencial que celebra sua revelação coletiva é subtraído pelo computador como mediação absoluta de toda forma, de todo objeto, de toda expressão, de toda existência viva. A tela do computador agora só nos põe em contato com a estrutura modular da reprodução digital, o que se tem chamado de “estrutura fractal das novas mídias” (26). O que ela nos abre ante nosso olhar é a epifania do espetáculo, a revelação de uma segunda natureza eletrônica.

Em nossa primeira visita, Ulisses falava com pesar da solidão e da incompreensão que rodeavam suas cerâmicas. Seu lamento se somava à dor diante da destruição dos legados culturais africanos e indígenas daquela vasta região. Falava de extermínio. Falava do silêncio. Este silêncio, os limites do visível e da palavra, as fronteiras obscuras da significação é o lugar da criação artística. É o último segredo do artista. O imperativo mediático do visual, seu caráter acomodatício e espetacular, e sua proliferação indefinida, o cancela.




5

Quando regressei a Nova York sentia na boca um sabor agridoce. Nossa despedida de Ulisses havia sido violenta. Mas seu triunfo contra nós, agora o experimentávamos como nossa própria vitória contra uma civilização eletrônica convocada para colonizar o coração desta cultura popular com a miséria de suas imagens triviais e sua onipresente proliferação. Sob o signo destes sentimentos encontrados redigi finalmente o relatório para meus sponsors: “The last artist is a paradox video because of its goal: it reproduces what it can not be reproduced, it performs images and sounds of natural landscapes, and interviews on a ‘subject matter’ which resists being reduced to performance. This vídeo is also paradox because it intends to be incorporated in a global project of digital culture: the Hemispheric Institute.”

Era uma provocação. Digitalizar uma imagem que não existia, traduzir performaticamente uma voz invisível. Enquanto redigia a mensagem administrativa, recordava a última cena na casa de Ulisses. Era realmente um último assalto para provar a nós mesmos que havíamos usado todas as armas ao nosso alcance para gravar uma entrevista com o artista. Usamos a intimidação de um dinheiro que relativamente devia significar muito para ele. Entramos em sua casa com uma câmara. Esgrimimos todas as persuasões que fomos capazes de improvisar. Ulisses repetiu uma vez mais seus argumentos. Insistiu de novo em sua linguagem secreta com os animais e plantas, na urgência de criar escolas artísticas para as crianças, e na crença em deus. Logo, repentinamente, saltou no meio da sala e aos gritos disse que nos mostraria como falava aos animais e à selva. E enquanto saltava e bailava enlouquecidamente, e de sua garganta brotavam incompreensíveis sons guturais, como se houvesse entrado em estado de transe e os gorjeios de um pássaro monstruoso houvessem se apoderado de seu peito, parecia no dizer com uma grande gargalhada que a experiência artística, afinal de contas, era uma emoção, não um espetáculo.

A resposta do Institute foi delicada. “I'm not sure how to handle this… I had understood … to support part of the costs if the materials you developed ended up on our website … I would not be ável to justify the expense to Ford. So please make sure that you give me a full and detailed report of what the project cost… We would definitely ask you to work with our designer”. Minha reação foi violenta: “I am perfectly aware of the intellectually challenging character of this video and research project. It explicitly challenges the postmodern constrution of “Pop Art.” It questions the reductive aesthetic category of “Art as performance.” It also exposes the prejudices, misconceptions and social misery surrounding so-called “popular art” in Latin America”. Protesto de meu departamento de línguas e literaturas: “I must tell you that it greatly disturbs me that you would send a message of this type, aggressively attacking a department colleague… in a way that goes well beyond the bounds of collegial discourse…” Minha réplica: “I can’t but consider this reaction as am administrative retaliation against beauty as the invisível…”

Mas interiormente estava arrasado. Minha provocação havia sido ofensiva e ineficaz. Meu projeto carecia de sentido dentro dos reduzidos limites da discussão estética e política academicamente admissível. E tudo o que havíamos experimentado juntos em nossas reiteradas visitas à chácara de Ulisses era irrelevante ante o ambiente de irrespirável banalidade que a mobilização mediática da guerra global havia desencadeado no campus. Deixei passar o tempo. Tentei esquecer o projeto. Só meses depois enviei um documento a Diana Taylor, a diretora do HemisphericInstitute, uma confissão, mas que nunca obteve resposta.

“É custoso me justificar como me custaria justificar um suicídio. Quando recebi tua resposta confusa ao meu provocativo relatório sobre The Last Artist, me dirigi ao website de teu Institute. De fato, nunca antes lhe havia prestado suficiente atenção. Encontrei facilmente seus textos teóricos e programáticos. Mas me deparei de imediato com uma categoria estética e politicamente problemática de performance. Logo encontrei um conceito de espetáculo que me parecia retirado da Behavior Psychology. Enfim, vi um projeto de restauração de memórias que implicava em um processo social e hermeneuticamente duvidoso de tradução e conversão digitais, insensível aos seus efeitos colonizadores sobre as memórias orais. E me encontrei com uma perspectiva teórica sobre a colonização de América que ignorava programaticamente sua racionalidade constitutiva, para logo se instalar confortavelmente em sua mesma lógica barroca do espetáculo como definição dos novos poderes e agentes da globalização. Em suma, me dei conta de que havia batido à porta equivocada”.

“Mas eu já a havia transpassado e já era demasiado tarde. Desde o começo havia assumido o projeto de digitalizar o documentário sobre Ulisses Pereira Chaves para a web. E agora percebia, com certo embotamento na mente, que a resistência deste artista contra a reprodução eletrônica de sua pessoa, de suas palavras e de suas obras, enfurnado em sua remota aldeia em Minas Gerais, estava talhada aos moldes dos postulados programáticos de colonização e colonização digitais do Hemispheric Institute, que ele, certamente, não conhecia”.

“Em outras palavras, reconstruir criticamente a experiência artística e seu significado cósmico e comunitário, tal como o formula Ulisses, significava pôr em questão a legitimidade teórica dos mesmos pressupostos epistemológicos que define o projeto do Institute, para o qual, sem dúvida, havia prometido contribuir com este vídeo. Este conflito é irreconciliável. Por isso me irritava”.

“Se essa história terminasse aqui, só teria que me desculpar pelo tom certamente agressivo de meus emails anteriores. Mas enquanto redigia o informe para a academia Popular Art&Digital Culture:The Last Artist, se apoderava de mim uma sensação de insegurança, como se o solo estivesse tremendo sob meus pés. Pouco a pouco me dava conta de que minha aproximação a este drama estético e humano estava equivocada desde o começo. Pior ainda. Percebia que meu ponto de partida era o vazio. Tentarei me explicar melhor”.

“De um lado, me era muito fácil criticar a categoria de espetáculo, tão central nas web pages do Institute, e, como se diz por aí, botar a boca no mundo... Em 1968 estava com os Situacionistas em Paris. Sua crítica do espetáculo havia colocado em ebulição os jovens mais sensíveis da capital, com a célebre ocupação do Teatro Odeon e sua transformação em improvisado parlamento popular como fim provisório. Alguns anos mais tarde eu estava em Berlim, trabalhando as estratégias espetaculares constitutivas do aparato estatal nacional-socialista, e suas raízes no barroco e no classicismo europeus. Nos anos noventa dediquei um livro às estratégias barrocas e pós-modernas de falsificação da memória e inversão ontológica da experiência. Só me faltava fechar este círculo com uma crítica à função colonizadora da cultura digital”.

“De outro lado, ao reconstruir nossa expedição em busca do último artista, e após nossa inflamada discussão com Ulisses sobre a natureza do processo criador e as considerações sobre a legitimidade ou não de sua resistência a ser gravado, me dei conta de que eu mesmo havia adotado esse olhar frio e imperativo que intelectualmente colocava em questão. Lentamente comecei a me reconhecer como uma superfície vazia que registrava o real, a agonia final de um último artista, ou os espetáculos de destruição financeira e militar do planeta, como a irrealidade de um efeito digital na tela de computador e de sua classificação e falsificação nominalistas. Rapidamente me vi no interior do meu olhar espectral no qual os códigos do espetáculo volatilizam a realidade no mesmo momento em que a designam”.

“Isso me permitiu compreender algo sobre o qual não havia prestado até então maior atenção. Em todas nossas visitas e ao longo de nossas conversações, Ulisses se abstinha de se dirigir a mim, de olhar-me o rosto ou nos meus olhos. Respondia a Lélia, se dirigia a Beth, falava com sua amiga Lira e com sua família. Mas me ignorava redondamente. E eu me via em seu olhar como uma presença ausente, como uma entidade fantasmática, como a espectral superfície de registro de um mundo de conhecimentos, dor e violência do qual eu, o observador digital e acadêmico, não podia participar, nem tampouco compreender”.

“Daí minha exasperação. Queria romper esta inversão ontológica do espetáculo mediático e acadêmico. Queria sar de minha própria pele. E queria fazê-lo de um só golpe. Acabar o assunto com um ataque furioso à função colonizadora da representação eletrônica, herdeira e sucedânea da função colonizadora do espetáculo sacramental do barroco vice-reinal. Sair brutalmente deste dilema que tenta experimentar a exuberância ontológica de um olhar artístico como o de Ulisses, e, ao mesmo tempo, reconhecê-lo sitiada pelo olhar vazio de uma cultura acadêmica e digitalizada, ou pelos valores e poderes que representa”.

“Por isso minha compulsiva, minha imperdoável agressividade. Com este gesto provocador pretendia me esquecer que eu mesmo formava parte desse espetáculo. Queria ocultar aquele meu rosto que via diluindo-se nos reflexos translúcidos das telas de computador. Queria cegar a visão de minha própria consciência morta”.




Post Scriptum

O vídeo The Last Artist, dirigido por Beth Formaggini e produzido com Lélia C. Frotta e Eduardo Subirats, é um documentário sobre a vida e a obra de Ulisses Pereira Chaves, um ceramista que não tem fama, vende suas peças pelo preço que custa o barro com o qual são feitas, vive pobremente de seus animais e de sua horta, é objeto da degradação de sua obra à categoria de artesanato, e, como todos os artistas da região, e quiçá também do continente, de origem indígena, africana ou cabocla, tem sido enganado pelos traficantes de arte popular para o mercado informal de souvenirs destinado ao turismo global.

Mas este documentário é algo mais. É o testemunho de uma irônica aventura. “Já saímos de casa sabendo que não violaríamos a recusa de Ulisses em ser filmado – me escreveu Beth no seu regresso –. E que esta era a questão principal. Sabíamos que viajaríamos milhares de quilômetros para nos defrontarmos com esta recusa... Foi uma experiência violenta. No momento de maior furor, quando Ulisses foi tomado pelos deuses e parecia querer exorcizar-nos, eu fiquei transtornada, tremendo e chorando como se me houvessem açoitado. E todos nós fomos açoitados... Por isso o olhar da câmara se voltou para o que estava ao redor de Ulisses: suas peças, os caminhos que nos levavam até ele, seus fornos que pareciam templos, sua casa, a água, a geografia, seus vizinhos, sua família e seus objetos, os animais, tudo o que não era ele mas que lhe afetava, ou havia sido afetado por ele. E tudo isso transpira sua presença, transpira seus vestígios, embebidos de seu mundo espiritual, aonde se encontram gravadas as cicatrizes da espoliação da qual tem sido objeto”.

The Last Artist é um documentário sobre um artista que rechaçou até suas últimas conseqüências a violência da conversão digital de sua visão artística do mundo e a volatilização eletrônica de sua obra em performances vazias de experiência. E este é o desafio que suas imagens assumem: captar através do aparato digital a relação intangível entre o humano, a natureza e o sagrado; e expressar artisticamente, através da edição digital da luz, do movimento, um concerto de três mil rãs que nos deparamos inesperadamente na selva ou as expressões filmadas do rosto humano, os brilhos daquela espiritualidade que nos ensinou Ulisses. Todo isso está conservado pela notável coleção de suas obras que se encontra na coleção privada de Roberto Burle Marx, no Rio de Janeiro.

Este vídeo foi apresentado em março de 2003, sob uma forma inacabada. A falta de patrocinadores impediu sua edição final. Por isso sua diretora só permite sua divulgação em meios restritos e com fins didáticos. Pessoalmente considero este estado inacabado como a expressão mais adequada ao seu significado mais radical. The Last Artist é a crônica de um projeto acadêmico e digital voluntariamente abortado. E é a expressão dos limites da reprodução digital e de sua cumplicidade arquivista com os processos de destruição tardo-industrial de memórias culturais na escala global.

Last but not least, este documentário foi concebido originalmente como uma contribuição à digitalização de tradições populares da América Latina no Hemispheric Institute da Ford Foundation e Nova York University. Uma contribuição paradoxal, porque seu motivo central, a recusa da reprodução digital da experiência artística, colocava em questão os objetivos políticos desta instituição eletrônica: a conversão digital das memórias culturais e a difusão performática de suas expressões artísticas.

The Last Artist quer chamar a atenção para a riqueza espiritual das comunidades populares da América. Mas é também uma denuncia do empobrecimento letal, econômico e mediático, ao qual estão submetidas. Seus autores consideram firmemente que a solução para este dilema não reside na digitalização de suas representações performáticas. Que o fundamental é apoiar intelectual e politicamente a sobrevivência destas comunidades populares, nas quais estas obras constituem o meio de preservação e desenvolvimento de formas de vida e conhecimento milenares.




Agradecimentos

Tenho uma grande dívida para com Lélia Coelho Frotta por ter me apresentado ao artista mineiro Ulisses Pereira Chaves, por seus ensinamentos sobre as tradições populares brasileiras, e por sua imensa generosidade. Agradeço a Erna von der Walde as cuidadosas críticas conceituais e sugestões formais que tornaram possível o ensaio sobre arte popular e cultura digital. A Beth Formaggini, por seus comentários sobre a outra face do problema: as possibilidades da arte digital no contexto das culturas populares. Carla Milano me ajudou a cristalizar o conjunto destes ensaios sob o título brasileiro de um nunca acabado Paraíso (primeira edição brasileira, de 2001, com uma parte dos ensaios deste livro, com o título de uma “Penúltima Visão do Paraíso”). A Nadia Benavid agradeço a devoção poética de sua versão inglesa destes ensaios. Não em último lugar, quero agradecer a Diana Taylor seu generoso, ainda que abortado, apoio ao projeto de um vídeo documental sobre “O último artista”. Também quero expressar meu agradecimento a Consolo Saízar por publicar este livro, “na velocidade de um raio”, em minha querida cidade do México. E a Richard Foley, diretor da Faculty of Arts and Sciences de Nova York University, por seu apoio acadêmico.

Notas

1
KRENAK, Ailton. O lugar onde a terra descansa. Rio de Janeiro, Eco Rio, 2000.

2
FAYE, Jean-Pierre. Os linguagens totalitários. Madrid, Taurus, 1974, p. 567 e seguintes. Capitulo Die Reihe, a série.

3
SCHELTEMA, Frederik Adama van. Die deutsche Volkskunst und ihre Beziehungen zur germanischen Vorzeit. Leipzig, Bibliographisches Institut, 1938, p.14 e seguintes; ORTEGA E GASSET, José. Espanha invertebrada (1921). Madrid, Alianza, 1983, p. 94-97.

4
HEIBER, Helmut (editor). Goebbels-Reden. Düsseldorf, Droste Verlag, 1971, Bd. 1, p. 96.

5
Como assinalou Agustín Laó Montes em “Mambo Montage. The Latinization of Nova York City”, in MONTES, Agustín Laó; DÁVILA, Arlene. Mambo Montage. Nova York, Columbia University Press, 2001, p. 15.

6
Uma crítica contra a produção fílmica de Hollywood e da Ufa como indústria do entretenimento, desenvolvida por outros críticos da época, como Siegfried Kracauer. KRACAUER, Siegfried. Das Ornament der Masse. Frankfurt a. M., Suhrkamp Verlag, 1977, p. 271 e seguintes.

7
BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften (R. Tiedemann and H. Schweppenhauser eds.) Frankfurt a.M., Suhrkamp Verlag, 1972, vol. I-2, p. 492.

8
EHRENBURG, Ilja. Die Traumfabrik. Berlin, Malik Verlag, 1931, p. 220 e seguintes.

9
CANNADAY, John. “Pop Art Sells On and On” in: WHITE, David Manning (ed.). Pop Culture in America. Chicago, Quadrangle Books, 1968, p. 238 e seguintes.

10
HUYSSEN, Andreas. After the Great Divide. Modernism, Mass Culture, Postmodernism. Bloomington and Indianapolis, Indiana University Press, 1986, p. 155.

11
FISHWICK, Marshall W. Popular Culture. Cavespace to Cyberspace. Nova York / London / Oxford, The Haworth Press, 1999, p. 247-249.

12
The New Science of Giambattista Vico. Ithaca and London, Cornell University Press, 1984, p. 118.

13
HERDER, Johann Gottfried. Briefe zur Beförderung der Humanität. Frankfurt a. Main, Deutscher Klasssiker Verlag, 1992, p. 242.

14
Ibid., p. 123 e seguintes.

15
Esta ampliação do conceito de cultura, esta abertura da monolítica racionalidade tecnocientífica tem sido um objetivo formulado pela antropologia clássica. E não em último lugar pela literatura do século 20. Sem sair dos limites do Brasil, podemos citar a este respeito uma série de pesquisas e ensaios. Dois deles são de autoria nada menos do que dos fundadores da antropologia brasileira: Curt Nimiendajú Unkel e Theodor Koch-Grünberg. [NIMUENDAJÚ, Curt. As lendas da criação e destruição do Mundo como fundamentos da religião dos Apapocúva-Guaraní. São Paulo, Editora Hucitec, 1987; KOCH-GRÜNBERG, Theodor. Zwei Jahre unter den Indianern. Reisen in Nordwest-Brasilien 1903/1905. Graz, Akademische Druck- u. Verlagsanstalt, 1967]. Este último trabalhou no terreno das artes visuais das nações amazônicas e compilou uma ampla série de narrativas orais que precisamente foram o ponto de partida de uma das obras literárias pioneiras da modernidade latino-americana: Macunaíma, de Mário de Andrade. O próprio Mário de Andrade levou a cabo uma série de trabalhos de campo sobre a música popular brasileira. Mais recentemente, Berta G. Ribeiro dedicou uma obra teórica às definições de arte indígena e popular. [RIBEIRO, Berta G. Arte indígena, linguagem visual. Indigenous art, visual language. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1989]. E não podemos deixar de lado as pesquisas realizadas por José Guimarães Rosa ou Darcy Ribeiro, em um território limite entre a literatura e a antropologia, porque estas obras precisamente mostram a possibilidade aberta de integrar a restauração filológica de lendas, expressões artísticas e formas tradicionais de conhecimento em um mundo moderno, como um meio de corrigir seu rumo torcido de espoliação e destruição humana. [BASTOS, Augusto Roa. As culturas condenadas. México D.F., Siglo XXI, 1978].

16
EINSTEIN, Carl. Negerplasstik. München, Kurt Wolff Verlag, 1920, p. 12 e seguintes.

17
ELIADE, Mircea. Shamanism. Archaic Techniques of Ecstasy. Princeton, Princeton University Press, 1951, p. 98-99.

18
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo, Companhia das Letras, 2001, p. 164 e seguintes.

19
BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften (op. cit.), vol.2.1., p. 145 e seguintes; DEWEY, John. Experience and Nature. Nova York, Dover Publications, 1958, p. 82.

20
STEINER, Rudolf (ed.). Goethes naturwissenschaftliche Schriften. Weimar, H. Bèohlau, 1890-1904, vol 1, p. XXXI.

21
IZUTSU, Toshihiko. Sufismo e taoísmo. Madrid, Siruela, 1993, vol I, p. 226 e seguintes.

22
KLEE, Paul. Schriften, Rezensionen und Aufsätze. Köln, DuMont Buchverlag, 1976, p. 118.

23
MARRA, Michele. Modern Japanese Aesthetics. Honolulu, University of Hawaii Press, 1999, p. 254.

24
LORCA, Federico García. Conferências. Madrid, Alianza Editorial, 1984, vol. II, p. 85 e seguintes.

25
OTTO, Walter F. Aufsätze zur Römischen Religionsgeschichte. Meisenheim am Glan, Verlag Anton Hain, 1975, p. 92 e seguintes.

26
MANOVICH, Lev. The Language of New Media. Cambridge / London, The MIT Press, 2001. p. 30.
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