quinta-feira, 11 de junho de 2009

Cidades invisíveis

Apartamento 608 - Coutinho.doc


Apartamento 608  de Beth Formaggini

Edição: Joana Collier e Ricardo Miranda

Edição de Som : Carlos Cox

Publicado Por Luiz Rosemberg Filho & Sindoval Aguiar na Revista virtual Via Brasil e no site do Congresso Brasileiro de Cinema:

Eduardo Coutinho

diacrianos.blogspot.com

 

Rio de Janeiro – Ver e saber olhar são coisas diferentes. Todos podem ver, mas poucos sabem olhar. E é essa a diferença que atravessa e amplia esta pequena jóia de Beth Formaggine que parte do movimento interno de uma filmagem complexa. Ainda assim tranquilamente formula e prolonga questões na construção do seu próprio filme sobre as filmagens do Edifício Master, belissimamente editado não como fachada de um discurso comum sobre o Outro, mas assumindo toda a complexidade da criação de um filme difícil, pois geograficamente limitado a um prédio de pessoas comuns.

Eduardo Coutinho é observado sem mistificação alguma. Vê-se sim a sua luta para romper com o processo da ilustração da mesmice, como em 97% dos nossos documentários onde o Outro é só uma mercadoria sem alma ou contradição. Daí a responsabilidade de Beth e Joana Collier, no uso da fragmentação. Filma-se o real, mas edita-se apenas momentos poéticos. Dá-se especificidade a cada expressão, esboçando não o filme feito por Coutinho, mas as escolhas de Formaggine, tenaz e destemida. E são bastante claras as diferenças entre o Edifício Master (por nós já defendido), e a construção e os pensamentos da delicada edificação deste seu filme. Beth ilumina com cuidado essa passagem da ideia para as suas imagens.

Talvez seja, entre os documentários brasileiros, o primeiro trabalho serio sobre a elaboração pensada de um outro filme, longe de ser um making-off. E mais próximo das dúvidas do que das certezas. É quase um Oito e Meio do nosso documentário, em que Coutinho enfrenta seus medos, fantasmas e dúvidas. Quase um filme que se descobre na solidão interna do realizador.

E é interessante pensar essa obscuridade das muitas dúvidas de um documentário. Desmistifica-se com veemência e poesia de que tudo é documentário, e que toda imagem ou depoimento serve como condução da narrativa. O próprio Coutinho conduz deixando-se levar por uma jovem equipe que se transcende no quietismo das muitas dúvidas de tudo e de todos, onde a essência é o filme sobre pequenas vidas de certo modo, opacas. Ora, como dar um significado poético ao lado comum de um espaço comum? Mas interessa ao filme e a todos expor contradições sem magoar quem quer que seja. Edificou-se um país assim: adoentado e pequeno por dentro e sem vida inteligente por fora.

Beth Formaggine filma o tempo real da criação. Todos num apartamento alugado, pensando o prédio todo como sendo um país desconhecido. Dá-se significação as muitas contradições de um filme sendo feito. Logo no início, Coutinho diz não tem nada muito importante a dizer. E diz muito o tempo todo. A cineasta o filma com carinho e admiração. Filma-o pensando, fumando e falando o tempo todo. Não para o filme de Beth, mas para a sua própria equipe. Eis a razão de um filme diferente sobre o processo de criação do Outro. Repetindo: não é um trabalho sobre alguém, mas sobre o pensamento e a construção de um filme, do vazio as suas múltiplas contradições.

Falar de dentro nos parece mais interessante que estar disciplinado de fora como muito dos nossos críticos. A finalidade de um bom filme (e aí falamos como realizadores) é se reinventar a cada instante. Beth deixa-nos absolutamente livres para sonhar, entender, gostar ou mesmo não gostar. A grandeza do seu trabalho repousa no seu doce olhar sobre cada momento na construção do filme de Eduardo Coutinho. E a relação entre a cineasta e o filme do Outro, deve ser compreendida como uma experimentação bem sucedida, que distingue o Apartamento 608 de todos os documentários feitos sobre cineastas, atores, literatos e personalidades, pois documenta-se a gestação de um processo original, numa espécie de encenação de intimidades muito além da imagem-mercadoria.

Uma vez mais o cinema brasileiro é surpreendente, como agora onde documenta com estilo o universo de Coutinho. O filme excelente de Beth acaba sendo um projeto de concepções individuais e coletivas, com a abordagem de uma estética sociológica, filosófica e histórica. Um choque de realidades e emoções. De necessidades, compromissos e responsabilidades e tudo o que podemos definir, ou pelo menos tentar como um princípio de alterdireção deste cineasta do filme Edifício Master.

E a abordagem de Formaggine não é válida somente para o cinema mas, para todo e qualquer movimento do ser humano em busca da sua humanidade ou dos porquês dessa perda, negando uma construção tantas vezes tentada, como no velho mundo grego e, terrivelmente violentada nos processos altamente científicos e tecnológicos e de expansão dos progressos. De invasões e de extermínios em nome de interesses e verdades tão estranhos aos invadidos!

O que somos nós? O que é a coletividade? E este Edifício Master? O Apartamento 608 não tem respostas, mas sabe falar, ouvir, interagir entre verdades e mentiras, realidade e imaginário. O que a arte dos dois filmes soube muito bem nos ajudar para alguma caminhada neste absurdo que é a vida, de cujo valor cada um de nós nos tornamos muito responsáveis. Antes que a coletividade como sociedade e ordem nos aniquile e nos massacrem como excluídos e dispensáveis. Indagações precisas as de Coutinho, para uma projeções precisas como as de Formaggine.

Apartamento 608, o de nossos vazios e o dos vazios da multidão solitária. E Coutinho e Formaggine tiveram nos dois filmes, que projetar estes vazios! A arte é fiel ao nosso imaginário e recusa a ideologia e só ela sabe dar forma à utopia e ao futuro como crença, no vir-a-ser! A essa coisa difícil de ser que somos todos nós! Como Coutinho mesmo se definiu: “Eu gosto de estar só, de estar e deixar de estar”; esta tentativa de ser! E os dois grandes movimentos do filme de Formaggine acabam sendo fiéis e explícitos a todas as ocorrências; as que antecedem e as que sucedem a realização do filme de Coutinho. Da angústia ao prazer. Se, momentâneos ou não, vale o registro.

Apartamento 608 se torna um filme que jamais poderá ser visto como um making-off porque, pela leveza, sutilezas, profundidade de perspectiva e universo que aborda entre contradições, a realidade e o imaginário acaba derrubando todas as paredes ou muralhas entre o atrás e o na frente das câmeras. Se fazendo “in”, uma invasão que somente o sonho pode realizar, provocando conscientes e inconscientes e definindo uma autoestima, para uma projeção do Outro que, nada pode ser, senão nós mesmos. O que nunca conseguimos definir como bastardos de nossa própria cultura e civilização!

Os dois filmes segredam e revelam sem sublimar. O que a psicanálise tenta mas... (dai a César o que é de Cesar!). Pelo menos Freud tentou! E que Coutinho e Formaggine tentam! E são tantas as graduações que, somente o imaginário, o mágico podem hipotecar e projetar como o possível e o impossível, os caminhos da arte. Esta bela saída para nossas vidas e para o filme de Coutinho e o de Formaggine. Cada um com seu olhar! Cada um com seu filme!

Coutinho parece dono de uma alterdireção bem definida, levando para o trabalho o conjunto de suas experiências; avalia, joga, negocia com seus colaboradores. E suas preocupações são sempre elevadas além das contingências. Pensa o ser humano e eleva-se. E Beth soube acompanhá-lo nos contrapontos, mas com orquestra própria no mesmo concerto. O filme de Formaggine acaba dando forma aos tormentos e dúvidas do diretor Coutinho, o que ao final o filme define sem redimir ou compensar. Porque o ser humano e toda a humanidade são uma paixão inútil, como definia Sartre em O Ser e o Nada. Mas, o jogo da vida, além de uma necessidade é também uma sedução ou paixão.

O que esta cineasta e produtora independente captou belamente em Apartamento 608. Pela fluidez sem refluxos de uma narrativa paciente, amorosa, sensível e generosa. Para nos dar, pelo menos uma certeza, de que Platão tinha razão quando tentou banir o artista de sua República. Como no mundo do espetáculo e dos simulacros de hoje. Em que, aquele que tenta ser, refugia-se no vazio! No Apartamento 608!

25/4/2009

 

Apartamento 608 - Coutinho.doc


 
 
É Tudo Verdade: Beth Formaginni flagra o cineasta em ação no documentário  "Coutinho.doc", que revela os bastidores de um mágico em pleno ato de ilusão  e maravilhamento.Eduardo Coutinho  em contraplano
  
 Por Amir Labaki, de São Paulo
24/04/2009
                             
      
 O cotidiano de Coutinho está em  documentário que estreia neste sábado no Canal  Brasil
 

Documentaristas raramente se  deixam revelar por documentários alheios de peito tão aberto quanto se  permite Eduardo Coutinho em "Coutinho.doc - Apartamento 603", o  obrigatório retrato dele assinado por Beth Formaginni cuja estreia é  neste sábado, às 21h, no programa "É Tudo Verdade", no Canal  Brasil.
 

À primeira vista, trata-se  de um making of tardio de "Edifício Master", dirigido por ele em 2002  num prédio de classe média de Copacabana. Fosse apenas isso, já seria  um registro único dos bastidores das filmagens de um dos principais  documentários contemporâneos brasileiros. Experiente assistente e  produtora de Coutinho, Beth foi muito além. Seu filme flagra pela  primeira vez Eduardo Coutinho em ação.
 

"Edifício Master" é um dos  pontos altos da fase áurea do cinema de entrevista na obra dele. Sua  filmografia pode ser dividida em seis grandes períodos. O primeiro  ocorre em sua estreia dentro do cinema ficcional do Cinema Novo, com o  episódio "O Pacto" da trilogia "ABC do Amor" (1966) e os longas "O  Homem Que Comprou o Mundo" (1968) e "Faustão" (1970).
 

Nos anos 70, a segunda fase  destaca-se por sua brilhante conversão ao documentarismo dentro do  insuperado período inicial do "Globo Repórter", quando realizou  clássicos como "Seis Dias em Ouricuri" (1976) e "Teodomiro, o  Imperador do Sertão" (1978).
 

Já o começo dos anos 80  marca seu afastamento do programa para trabalhar naquela que se tornou  sua obra-prima absoluta, "Cabra Marcado para Morrer" (1984), no qual  retrabalha como documentário reflexivo um projeto ficcional  interrompido pela ditadura militar instaurada em 1964.
 

A consagração brasileira e  internacional com "Cabra Marcado para Morrer" paradoxalmente iniciou  um período de imensas dificuldades profissionais que se estendeu por  mais de uma década. Coutinho dirigiu então sete obras, em geral  realizadas em vídeo, sendo seis médias-metragens e apenas um longa  cinematográfico, "O Fio da Memória" (1991).
 

Ainda assim, ao menos dois  dos médias, "Santa Marta - Duas Semanas no Morro" (1987) e "Boca do  Lixo" (1993), representam momentos seminais, não apenas pelo que  retratam - o cotidiano de moradores de uma favela e o de desvalidos  que sobrevivem de um lixão -, mas também pela experiência como  documentarista do próprio Coutinho, ajudando a forjar o método que ele  aperfeiçoaria nos filmes da fase seguinte.
 

Entre 1997 e 2005, com  apenas uma exceção ("Peões", uma revisita aos companheiros  sindicalistas de Lula), Coutinho consolidou um particularíssimo  dispositivo de "cinema de entrevista" em quatro documentários: "Santo  Forte" (1997), "Babilônia 2000" (1999), "Edifício Master" (2002) e "O  Fim e o Princípio" (2005). Inicia-se então a sexta e atual fase de seu  cinema, na qual problematiza a questão do real e do ficcional no  cinema com filmes desbravadores como "Jogo de Cena" (2007) e o  novíssimo "Moscou", lançado na competição brasileira do recente É Tudo  Verdade.
 

"Coutinho.doc" nos traz,  assim, o cineasta no auge de um período e à beira de uma nova ruptura.  Vemos para além de seu particularíssimo método, com a definição de um  cenário, a escolha de seus depoentes e o preparo para o registro de  seu encontro em câmera com os entrevistados.
 

Coutinho permite-se aqui ser  flagrado em pleno exercício cotidiano de seu ofício. Eis o debate  franco com suas assistentes sobre as pré-entrevistas com potenciais  personagens. Eis as inúmeras dúvidas sobre as escolhas. Eis seu  desabafo sobre o medo de o projeto naufragar.
 

Beth conseguiu ainda mais.  Sua câmera registra, pela primeira vez, o contraplano das entrevistas  de Coutinho. Ei-lo perguntando, reagindo às respostas, sorrindo e  seduzindo seu entrevistado.
 

Uma cortina assim se  levanta. É como se espiássemos os bastidores da técnica de um mágico  em pleno ato de ilusão e maravilhamento. Trata-se simplesmente de um  dos mais valiosos documentos recentes da história do cinema  brasileiro.
 

Você não precisa ter visto  "Edifício Master" para se esbaldar com "Coutinho.doc". Conhecê-lo  torna tudo mais complexo e fascinante - o filme está disponível para  todos em DVD, mas não é essencial para o programa deste fim de semana.  O "Coutinho.doc" de Beth Formaginni é um belo documentário em si  mesmo.
 

Amir Labaki é  diretor-fundador do É Tudo Verdade - Festival Internacional de  Documentários.

 

Projeto Angeli